terça-feira, 6 de outubro de 2009

(Flashback-Outubro 2007) O caso Miala e o comportamento generoso da sociedade civil

Com base nas várias leituras que têm sido feitas a propósito do comportamento da sociedade civil em relação ao “caso Miala”, cheguei a algumas conclusões, que definitivamente ainda não são definitivas. Em Angola é muito difícil fazer apostas, porque a conjuntura é quem mais ordena. Uma destas conclusões é que a sociedade civil em Angola não existe como tal, como um espaço aberto, crítico, construtivo e atento aos reais problemas sócio-políticos que preocupam o país, independentemente de quem esteja no poder. Como ainda não tivemos uma outra experiência político-governamental, para além do actual regime liderado pelo MPLA, fica um pouco difícil falar do relacionamento da sociedade civil angolana com o poder político de uma perspectiva mais abrangente. A sociedade civil em Angola divide-se, nomeadamente, entre as organizações, entidades e instituições que não criticam o Governo por estarem politicamente (génese) muito próximas dele ou do partido que o suporta e as outras que o fazem em função dos seus interesses de conjuntura. Este segundo segmento é muitas vezes conotado com a própria oposição política ao regime, o que leva os seus detractores a ignorarem propositadamente o facto da lei não proibir a existência de associações políticas. Seja como for, a lei ordinária (das associações) é ambivalente, pois embora não proíba formalmente, acaba por não permitir um tal exercício. O “caso Miala” traduz bem esta dicotomia, que por si só também não esgota o panorama que está aqui em análise, pois ele é muito mais vasto, complexo e por vezes movediço. Antes do julgamento que culminou com a sua (desnecessária) condenação, Fernando Garcia Miala (FGM) era, certamente, entre as personalidades mais cinzentas do regime, aquela que mais assustava a sociedade civil (onde se inclui a imprensa) que normalmente crítica o Governo. O “secreta” Miala, pelo imenso poder que acumulou em tão pouco tempo, era de facto vista por esta sociedade civil como sendo a maior ameaça à sua própria sobrevivência. Convêm referir que depois da extinção da Mpalabanda em Cabinda, um processo a que Miala não será certamente alheio, algumas das suas organizações mais activas voltaram a estar ameaçadas de morte prematura e já houve um dos seus mais destacados activistas que foi aconselhado a exilar-se por algum tempo. Estamos a falar do Luís Araújo da SOS-Habitat. Depois do afastamento do SIE e do seu posterior julgamento, FGM foi “transformado” por essa mesma sociedade civil que ele tanto assustava, em mártir do regime. As voltas que a vida dá! Curiosamente, FGM é actualmente uma das “armas de arremesso” mais utilizadas por essa mesma sociedade civil para questionar a transparência do Estado angolano na vertente que tem a ver com a independência do seu poder judicial. Uma vertente que ainda é negativa, embora alguns juízes e procuradores já tenham dado provas de que a dependência e a subordinação do passado deixaram de fazer parte das suas orientações de trabalho no presente. É pena que estas provas não resistam muitas vezes a algumas situações onde os interesses do poder político (ou de alguns do seus segmentos) são mais ostensivos, como foi claramente o “caso Miala”. O antigo Director do SIE acabou por ser condenado por tudo menos por aquilo que era realmente acusado, de acordo com as conclusões da comissão de uma sindicância onde ele foi o grande ausente. Se outras motivações não forem arroladas para explicar esta evolução, a referida sociedade civil assume assim uma postura de grande generosidade para com um cidadão angolano que, de repente, foi transformado de bestial em besta por um governo que ele serviu de forma tão abnegada e com resultados tão positivos no âmbito de uma estratégia que culminou com o 22 de Fevereiro de 2002. A sociedade civil signatária deste gesto dá assim uma lição ao país, considerando que os valores são mais importantes que as pessoas e que estas não devem perder, em circunstância alguma, os seus direitos nem a sua dignidade. A sociedade civil eleva deste modo os pilares do estado democrático de direito a um patamar intocável que não deverá ser condicionado por nenhuma conjuntura política. Só com esta abordagem estaremos todos nós à salvo dos ataques pontuais das conjunturas e das manipulações, por mais poderosos que a dada altura da nossa trajectória possamos ser ou sentir que somos. Os cidadãos angolanos não podem ser dos reféns do poder político, estando este igualmente subordinado ao império da lei, o que ainda não é o que acontece em Angola. É neste quadro que entra em cena o poder judicial com a sua balança, com a sua espada e com os seus olhos vendados, desde que os seus magistrados tenham realmente um espaço de manobra onde só o seu martelo seja ouvido. O Estado Democrático e o Estado de Direito têm assim que saber coabitar, sem atropelos nem tentativas de asfixiamento mútuas, pois o facto de termos conseguido uma maioria absoluta nas urnas só nos dá o poder de resolvermos da melhor forma (mais rapidamente) os problemas do povo e não de complicar ainda mais a vida dos cidadãos. Os eleitores escolhem tudo menos dificuldades. Ninguém vota num partido ou num candidato que prometa mais burocracia, mais perseguições, mais violações dos direitos humanos ou mais “sacanagem” como diriam os brasileiros. É evidente que o poder dos juízes também tem limites, caso contrário correríamos o risco de cair nas mãos dos ayatolás que espreitam as nossas repúblicas laicas à espera da primeira oportunidade para montarem os seus tribunais da lapidação. Para quem não sabe, lapidar também significa matar à pedrada. O grande problema é que mesmo nas nossas repúblicas laicas acabamos por ter ayatolás com outras indumentárias.