sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Apresentação do livro do Luaty Beirão/ “Sou eu mais livre então/Diário de um Preso Político Angolano”.

Não precisava de justificar a minha presença neste acto, mas devo confessar-vos, porque acho interessante partilhar este flashback logo a abrir esta apresentação, que decidi aceitar o convite para estar hoje aqui a falar-vos um pouco deste primeiro livro (não programado) do Luaty Beirão, antes de mais por razões que têm a ver com o meu próprio passado, quando era um pouco mais jovem que o autor, na altura tinha eu pouco mais de 21 anos, estava nas mesmas condições que ele viveu entre 2015/2016 e ainda nem sequer tinha garantida pela via da reprodução a continuação da minha espécie, numa altura em que ninguém, rigorosamente ninguém de nós, sabia exactamente como é aquela historia iria terminar. 
Como todos sabemos, terminou muito mal.
Esta apresentação, se quiserem, é um bocado a minha “vingança do chinês” por não ter conseguido retirar (nem a bem/nem a mal) os meus apontamentos da cadeia que acabaram sendo confiscados pelas vigilantes autoridades carcerárias da época, de uma época muito complicada mesmo para os milhares de jovens que se viram confrontados com aquela “nova vida” sem liberdade.
De uma cadeia, onde tal como o Luaty e os seus companheiros também fomos parar por razões políticas neste mesmo país, mas no já distante ano de 1977 e num ambiente que, comparado com o actual, espelha bem o quanto Angola tem estado a evoluir para melhor, num lento e contraditório processo de transformações politicas e sociais que, lamentavelmente, tarda em oferecer-nos o país definitivo a que temos direito e merecemos, sobretudo após estes primeiros 15 anos do fim da guerra.
O país definitivo que não significa o paraíso pois este é que está mesmo definitivamente perdido algures não sei bem onde, é o tal do Estado Democrático de Direito a funcionar acima dos 90%, com aquele mínimo de paz social consolidada, tendo como trave mestra da sua arquitectura o respeito e a promoção dos direitos humanos, até ao ponto de deixarmos de falar deles por já não haver necessidade de reclamar ou de criticar.
Em princípio muitos de nós aqui presentes nesta sala, já não deveremos pertencer a este mundo quando esta Angola chegar, se é que algum dia chegará mesmo, o que não nos impede de ver na trajectória percorrida até ao momento alguns sinais de esperança num país que, quanto a nós, só entrará em rota de concertação irreversível, quando politicamente Angola for Luanda, sendo esta redução apenas uma referência circunstancial aos recentes resultados eleitorais do maior círculo provincial do país com mais de 2 milhões de eleitores registados. Potencialmente Luanda tem muito mais do que estes dois milhões. Resultados que para já, são para nós o paradigma do equilíbrio que necessitamos com alguma urgência e que afinal de contas já está perfeitamente ao alcance das nossas expectativas, a reflectir uma das vertentes da trajectória atrás referida com uma nota mais positiva.
Com o Luaty aprendi agora mais um bocado desta “ciência” que é exportar papéis escritos para fora de uma cadeia angolana, conhecimento que, espero sinceramente, não voltar a precisar nunca mais e ainda com a esperança de um dias destes alguém me chamar não sei bem de onde para me devolver aquele meu bloco de notas que foi confiscado.
Não liguem muito a esta última esperança que é piada e apenas se aguenta de pé, porque acredito que ela, a tal esperança, é mesmo a ultima morrer.
Mas como o nunca não existe em absoluto e o saber não ocupa espaço, nunca se sabe o que é que vida nos reserva, pelo que há que continuar a desenvolver esta ciência, a dos papéis escritos, com a maior criatividade possível.
A outra razão que me levou a aceitar o convite, prende-se com o meu acompanhamento enquanto jornalista de todo o mediático “processo revu” iniciado praticamente desde o primeiro dia em que os jovens foram presos algures no território da minha eterna e já histórica Vila-Alice (e numa artéria que eu conheço muito bem).
Histórica, tendo em conta o número de acontecimentos políticos nacionais relevantes que têm tido por palco o meu bairro ao longo destes mais de 40 anos, onde o destaque vai, certamente, para a proclamação da dipanda, cujo aniversário, o 42º, vamos assinalar depois de amanhã, com o país dividido mais uma vez a fazer balanços distintos e senão mesmo contraditórios.
Na altura terei sido o primeiro jornalista a considerar os novos inquilinos do sistema carcerário angolano como sendo efectivamente presos políticos do regime ou mais exactamente, os primeiros presos políticos da 3ª República, o que diante dos factos em presença me parecia ser uma daquelas evidências monumentais impossíveis de ignorar por quem se movimenta numa área profissional, o jornalismo, onde os bois devem ser sempre chamados pelo seu próprio nome e de preferência alto e em bom som, por mais que isto custe a alguns ouvidos lá de cima ou cá de baixo, menos disponíveis para entender/aceitar outras músicas que não constem da sua “play-list” inicial.
Como é evidente, cada um tem os seus problemas de visão ou de audição e lida com eles da forma que melhor entender, sendo recomendável que o faça sempre nos limites dos direitos e das liberdades fundamentais que já estão devidamente consagrados em todos os textos jurídicos que nos balizam enquanto cidadãos de um país que é aquele que nos viu nascer e crescer até aos dias de hoje.
Tendo aceite o convite, sabia que a necessária/obrigatória leitura deste livro para estar aqui a falar um bocado dele como o mínimo de propriedade, me ia permitir à partida conhecer um pouco mais da vida dos jovens deste processo 15+2 a que eu também acabei por estar ligado por força de uma tormentosa decisão judicial que nos obrigou, violando ostensivamente alguns nossos direitos fundamentais, a comparecer em tribunal onde o nosso depoimento que durou pouco mais de três minutos se resumiu a uma resposta com três rotundos NÃOS, do tipo não vi, não sei, não imagino sequer.
Tudo isto apenas porque o nosso nome apareceu numa lista qualquer de um projecto de governo de salvação nacional, posta a circular no facebook, que de repente, num verdadeiro passe de mágica, foi transformada em prova fundamental da acusação para convencer o país que em curso estava realmente em preparação um golpe de estado, num país em que, sinceramente, não acredito que alguém nesta altura queira segurar no leme do barco mesmo que fosse só a título experimental e por uma ou duas semanas.
Inventariadas algumas das razões que me trouxeram até aqui e que me permitiram fazer algum enquadramento estratégico desta “perigosa” missão no território dos révus, passemos ao autor e ao livro propriamente dito.
Antes de mais uma nota de rodapé sobre a referência inicial “Não programado”.
Como nos explica o seu autor, o livro que nos reúne hoje aqui foi resultado de um processo que não é bem o clássico, quando nos decidimos a dar à estampa algumas palavras, muitas ou poucas, que julgamos terem alguma importância que justifica a sua partilha pública, para não desaparecerem no silêncio das gavetas da nossa memória pessoal.
Depois, a maka é mesmo arranjar um editor, sobretudo quando não temos um tostão furado no bolso e ninguém nos conhece, situações que o Luaty viu resolvidas além-fronteiras, por obra e graça da (Santa Barbara) Tinta-da-china, que mais uma vez apostou na edição de temas angolanos problemáticos/fracturantes, de que a maior parte das editoras portuguesas foge como o diabo da cruz, para evitarem problemas, como gostamos de dizer aqui, sublinhado por um sonoro não te metas. Das editoras nacionais é bom nem falar quando por hipótese são confrontadas com uma solicitação do género.
Talvez, gostaríamos de acreditar, sejam tempos que se estejam a preparar para pertencer definitivamente apenas ao passado, na sequência da transição em curso.
Talvez...
Se bem me lembro, com o Luaty apenas terei falado uma vez pessoalmente antes dele ser preso e por mero acaso de um encontro circunstancial na via pública na fronteira das nossas vilas, a Clotilde e a Alice que são vizinhas.
Já o conhecia/ouvia falar dele das notícias, das entrevistas e das pancadas policiais que, com alguma regularidade, ia colecionando no seu cada vez mais amolgado físico como resultado do seu activismo político mais ou menos libertário, mais ou menos iconoclasta, onde o destaque para mim era a sua coragem mais física que é sempre o maior desafio para quem anda nestas andanças e que o Luaty fez questão de levar quase até às ultimas consequências durante a sua greve de fome de 36 dias que acabaria por o catapultar para as luzes/holofotes da ribalta internacional, assim como a todos jovens que com ele foram presos e processados ao lado da imagem de um país que já há muito tempo que não era tão posta em causa do ponto de vista da qualidade da sua democracia.
Foi com a melhor das impressões que fiquei do Luaty após aquela primeira e única conversa, não tendo encontrado nele, aparentemente, nenhum dos vestígios mais agressivos com que os seus inimigos de estimação o caracterizavam.
Pelo contrário, a imagem que conservo até hoje dele é de uma pessoa calma, ponderada e mesmo afável, de facto a contrastar com os retratos mais agressivos que circulavam e que, certamente, ganharam alguma densidade depois do tal concerto do Atlântico, cujos pormenores fiquei agora a conhecer melhor lendo este “Diário de um preso político angolano”.
Isto para concluir que o Luaty, como todos devem imaginar, está muito longe de fazer parte do meu campeonato, tendo depois ficado a saber que a sua veia musical talvez lhe tenha sido transmitida por herança genética pela parte materna de uma voz que faz parte da minha juventude, quando a Paula, a sua mãe aqui presente, era a vocalista do melhor conjunto de música pop/soul dos anos 60 que actuava em Luanda.
“Os Jovens”, nome desse conjunto, eram de facto a nossa grande referência da época que até hoje conservo na memória, de onde entretanto já despareceram os timbres das vozes e dos acordes.
Curiosamente, os festivais de música pop eram realizados no cinema Império que depois da independência se passou a chamar Atlântico.
Era o conjunto dos Mários, pois todos os seus integrantes assim se chamavam, começando pelo seu tio, o Mário Rui, que dos antigos membros dos Jovens parece-me ser o único que até aos dias continua ligado activamente à música e com um belíssimo trabalho de investigação da nossa música popular urbana.
Apresentado que está o artista/activista, passemos ao conteúdo do livro, ou mais exactamente às minhas impressões com que fiquei do mesmo após a sua leitura, que é sempre a parte mais difícil destas encomendas, numa altura cada vez menos leio livros do princípio ao fim, sejam eles quais forem com destaque para os romances, com os quais praticamente cortei relações.
Trata-se de um défice que não tem parado de se agravar que tento compenso diariamente com uma leitura permanente e atenta do facebook, que é o único livro onde se pode ler e escrever ao mesmo tempo, com direito a poder editar os textos a qualquer altura sempre que nos apetecer e onde bem entendermos graças ao milagre de uma varinha mágica chamada smarthphone.
O livro “Sou eu mais livre então/Diário de um Preso Político Angolano”, que já vai na sua segunda edição, está dividido basicamente em duas partes distintas, mas algo redundantes no sentido de que a segunda parte constituída pela transcrição de uma longa conversa à distância via Skype que o autor manteve com o jornalista Carlos Vaz Marques reitera e explica melhor várias passagens do diário propriamente dito, o que não deixa de ser bastante útil para percebermos melhor a sua trajectória e o seu modo de pensar.
Lamentavelmente, o Luaty não conseguiu exportar para fora dos muros de Calomboloca o segundo caderno dos seus apontamentos diários que ao que consta continuam reféns até agora, a aguardar, possivelmente por uma amnistia mais específica.
Acreditamos que a sua publicação agora daria certamente a este livro uma outra densidade que nos permitiria enquanto leitores aprofundar o nosso conhecimento do seu pensamento e do universo carcerário, pois adivinhamos que na sequência das notas editadas do primeiro caderno, teríamos aqui mais tecido, mais linhas, mais botões, mais alfinetes e agulhas para costurarmos melhor esta apresentação.
A primeira impressão que tenho deste diário é sobre a grande utilidade do próprio exercício da escrita nas condições mais ou menos duras, mas sempre angustiantes de quem de repente se vê privado do maior bem que possui depois da vida que é a liberdade, sendo ainda mais angustiantes quando encaramos esta privação como uma violência discricionária de um poder autoritário, que é a forma como o autor olha para a sua situação pessoal e dos seus companheiros na Penitenciária de Calomboloca onde passou o maior tempo da sua reclusão.
Embora já sem os receios de um passado que conhecemos bem, escrever como preso político numa situação completamente indefinida do ponto de vista do day after é de facto uma experiência única que não nos podemos dar ao luxo de repetir mais vezes, nem por razões óbvias a maior parte das pessoas que já passou por uma cadeia, gostaria de o fazer.
No caso concreto desta experiência do Luaty, uma utilidade a valorizar sobretudo do ponto de vista da informação relativamente ao que se passa no interior das nossas cadeias de uma forma geral.
A este respeito é de notar que apesar do autor se encontrar em total conflito com a sua nova situação por se sentir vítima de uma grande injustiça, ele mantém a objectividade nas observações que vai vertendo para o papel ao ponto de tentar compreender ou de dar o benefício da dúvida aos diferentes comportamentos dos seus novos anfitriões, o que nos permite perceber melhor como é que funcionam ou não funcionam as nossas cadeias.
Para além das descrição das peripécias da vida sem liberdade e com pouco sol e do seu atribulado relacionamento com os seus carcereiros aos mais diferentes níveis, do topo à base, o Diário também vai sendo preenchido com as suas rimas de raper e com as suas reflexões mais políticas sobre o país/governação, onde não faltam algumas notas mais internas sobre o que pensa de alguns dos seus companheiros, a traduzir bem o facto do grupo ser informal, completamente heterogéneo e praticamente sem uma liderança mais definida a deitar por terra toda a teoria da conspiração que foi montada por uma certa narrativa oficial na hora de os apresentar ao país e ao mundo como verdadeiras ameaças ao Estado Democrático de Direito.
Passando por cima das restantes notas escritas na cadeia e já depois de lhe terem rusgado o segundo caderno e antes de ter entrado na greve de fome que por pouco não o retirava deste mundo, chegamos a parte mais substantiva do livro que é a sua segunda parte, preenchida por uma longa entrevista, numa altura em que se já encontrava em liberdade.
Nesta segunda parte feita ao ritmo de uma animada e prolongada conversa, onde a Mónica sua esposa também faz questão de dar o seu contributo, temos de facto numa sequência mais cronológica o Luaty  Beirão a falar de si desde a sua adolescência passando pela sua vida estudantil na Europa e de todo o seu envolvimento posterior num movimento social de contestação conhecido por révus que a certa altura entrou em cena em Luanda com uma verdadeira lufada, não diria de ar fresco, mas de um tipo de intervenção política denominada como não orgânica, isto é, completamente à margem da actividade partidária de oposição mais clássica, tendo como paradigma os movimentos anti-globalização.
Num das primeiras crónicas publicadas na Rede Angola depois da prisão do grupo tive a oportunidade de reflectir um bocado sobre o modus operandi destes jovens já bastante adultos
Em Angola sente-se que os “révus” estão a tentar definir um caminho próprio tendo em conta os contornos mais específicos da realidade nacional, que como pode dizer-se ainda “não é carne nem é peixe” do ponto de vista do próprio processo de democratização.
Nesta segunda parte do livro, vamos encontrar um Luaty que para o contexto da classe média/alta da nossa sociedade do pós-independência é de facto uma ave rara, num país onde os filhos, politicamente falando, raramente seguem um caminho diferente dos pais e muito menos entram em choque com eles na hora de escolherem um partido para votar ou para se alistarem, caso se interessem pela política activa.
Estamos a falar especificamente das famílias, de uma ou de outra forma, afectas ao partido governante, que são aquelas que melhor conhecemos por razões que são fáceis de adivinhar.
O Luatty faz essa diferença, sem negar nunca ou se esquecer das suas origens, o que faz dele uma referência difícil de ignorar, pelo menos do ponto de vista jornalístico que é aquele que tem orientado a nossa curiosidade profissional na abordagem deste epifenómeno que são os révus.
Em matéria de apresentação deste livro muito mais haveria para dizer correndo contudo o risco de não vos permitir depois a descoberta/fruição do seu conteúdo página após página, que é o que o autor nos convida na sua nota introdutória, mesmo sublinhando que nada do escreveu na cadeia foi para ser lido por outros.
 Mesmo sem ter qualquer vocação para proferir sentenças, se quiseres saber Luaty, conforme solicitas na referida nota, o meu veredicto final desta tua primeira aposta quase involuntária no mercado editorial, desde logo porque em princípio não terás programado nada do que te aconteceu há dois anos, digo-te simplesmente que valeu a pena teres deixado para uma outra pessoa a tua modéstia, conforme te recomendou a Santa Barbara Editora, quando te pediu que lhe enviasses os manuscritos que conseguistes colocar a salvo.
 Como também não tenho qualquer vocação para puxar o saco de ninguém, começando pelo meu próprio que é aquele que mais critico embora não tenha provas para vos convencer desta minha auto intolerância, não direi aqui o mesmo ou parecido com aquilo que ouvi recentemente, quando alguém conseguiu transformar uma antologia de frescas crónicas jornalísticas numa enciclopédia do saber quase total e universal.
O livro está giro e vai, certamente, ter alguma/bastante utilidade sobretudo para todos quantos não vos conhecem, nem a ti, nem aos restantes teus companheiros, no sentido de perceberem melhor tudo quanto se passou quer com o processo propriamente dito, quer com toda a vossa intervenção anterior e já com algumas pistas para o que pretendem continuar a ser nesta sociedade.
 Reginaldo Silva
Luanda, 9 deNovembro 2017