sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

"Uma mera Constituição semântica"

O Professor Doutor Jorge Miranda terá sido o primeiro constitucionalista estrangeiro a fazer um estudo sobre a nova constituição angolana, na sequência de uma solicitação que lhe foi feita o ano passado. As declarações que fez agora em Luanda onde esteve a participar em mais uma semana social promovida pela Igreja Católica deixaram algumas pessoas confusas, tendo em conta o conteúdo do seu parecer anterior. Nada melhor, pois, do que recordarmos aqui algumas das passagens do seu estudo para tirarmos algumas dúvidas. (…) IV – O sistema de governo angolano, não sendo, evidentemente, um sistema parlamentar, tão pouco se ajustaria ao modelo presidencial. Um sistema de governo presidencial caracteriza‑se, como se sabe, por: a) Presença de dois órgãos políticos activos, o Parlamento e o Presidente da República, com idêntica legitimidade representativa; b) Clara distinção entre poder legislativo e poder executivo; c) Independência recíproca dos titulares, com incompatibilidade de cargos, e, geralmente, com mandatos não‑coincidentes; d) Independência, sobretudo, por nem o Presidente responder politicamente perante o Parlamento, nem o Parlamento perante o Presidente; e) Donde, quer impossibilidade de demissão do Presidente por força de qualquer votação parlamentar, quer impossibilidade de dissolução do Parlamento pelo Presidente; f) Interdependência funcional, com mútua colaboração e fiscalização – na prática, tendo o Presidente faculdades de impulsão e o Parlamento faculdades de deliberação. Salvo a primeira característica, nenhuma das outras se depara na Constituição de 2010. O sistema aproxima‑se, sim, do sistema de governo representativo simples, a que, configurações diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a república corporativa de Salazar segundo a Constituição de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituição de 1967‑1969, vários regimes autoritários africanos. 17. Uma dúvida razoável A Constituição proclama o princípio da separação de poderes [arts. 2º, nº 1, 105º, nº 3, e 236º, alínea j), de novo]. Ora, as regras sobre os poderes do Presidente e sobre a sua eleição e a sua autodemissão afastam‑se deste princípio. Acarretam então este desvio como consequência que deva pensar‑se que, em vez de ter sido exercido o poder constituinte formal (nos moldes atrás indicados), ao fim e ao resto ter‑se‑á ostentado, em 2010, um novo e diferente poder constituinte material? A dúvida afigura‑se razoável. Mas, a despeito de tudo, pode supor‑se – e esperar‑se – que o enraizamento dos direitos e liberdades fundamentais, a dinâmica que vá desenvolver‑se no interior do Parlamento e a independência dos tribunais não permitam que a Constituição venha a tornar‑se uma mera Constituição semântica (na acepção de Karl Loewenstein), ou seja, uma Constituição, instrumento e não fundamento de poder. É cedo para responder. Uma alternativa seria reputar aquelas normas inconstitucionais – mas só para quem aceite a tese de inconstitucionalidade de normas constitucionais. E restaria o problema de saber como poderia o Tribunal Constitucional, criado pela Constituição, controlar a constitucionalidade das suas normas.