quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Comunicação MINUA 16/10/2002


De uma forma geral pode afirmar-se que a comunicação social é o novo fenómeno da sociedade angolana que está a viver uma complicada fase de transição para a democracia.

Os angolanos estão a descobrir e a exercer as novas liberdades democráticas em grande medida por intermédio dos órgãos de informação tanto os estatais como privados, tendo por pano de fundo um ambiente bastante contraditório, onde as tendências autoritárias e repressivas do passado monolítico se mantêm ainda bastante fortes a ofuscarem os novos valores e princípios democráticos que paulatinamente estão a emergir e a afirmar-se.

Com todas as limitações decorrentes da conjuntura política a afectar sobretudo o desempenho da informação estatal, há uma certa convergência de opiniões em apontar a comunicação social como sendo uma das locomotivas do processo de democratização em Angola.
Muito mais locomotiva seria se, de facto, os actuais órgãos de informação estatais assumissem na prática o seu estatuto de meios públicos, o que ainda está longe de acontecer, com todas as excepções que se conhecem.

 A redução desta influência pode medir-se com alguma objectividade, tendo antes de mais como principal referência os esforços desenvolvidos pelo poder político em manter sob seu rigoroso controlo a chamada comunicação social estatal (Rádio Nacional de Angola, Televisão Pública e Jornal de Angola).
A excessiva governamentalização é o principal traço da sua actuação, que se traduz, nomeadamente, pela sua recusa em veicular pontos de vista que possam chocar com os defendidos quer pelo partido no poder como pelo governo de JES.

Os jornalistas mais esclarecidos que hoje trabalham na média estatal são os primeiros a reconhecer esta situação de grande dependência dos desígnios do poder político.

Por exemplo, nas recentes Jornadas Técnicas de Radiodifusão organizadas em Fevereiro deste ano pela Rádio Nacional, foi exactamente esta a conclusão do grupo de trabalho que analisou a programação informativa daquela estação emissora.

A insistência nas mesmas fontes, entenda-se executivo e ou partido no poder, alternando raras vezes com as fontes da sociedade civil, ajuda a criar a imagem de que somos única e simplesmente lambe-botas do poder instituído”.

Esta constatação foi muito mal recebida pela direcção da RNA, tendo os seus autores sido seriamente aconselhados a reformularem a sua apreciação.

Com a maior parte da comunicação social existente no país sob o controlo editorial do governo está à partida grandemente limitado o seu impacto/influencia, sobretudo quando se trata de questionar a actuação do executivo em matérias fundamentais da vida nacional.

Mesmo assim, não se pode dizer que os jornalistas que trabalham para o estado sejam completamente amorfos na sua actuação, havendo a registar alguns momentos altos da sua prestação, com destaque para alguns dos seus colaboradores que se têm esforçado bastante por manter o profissionalismo nos limites apertados que o colete-de-forças rubro-negro (1) vai permitindo.
O grande problema que se coloca ao desempenho da comunicação social estatal é nos períodos de crise, quando o Governo, como acontece actualmente com a nova guerra, decide orientar o país para um determinado rumo.
Aí de facto a informação cede lugar quase completamente à propaganda, com a censura, a auto-censura, a manipulação e a desinformação a regressarem em força às redacções.

O tratamento dispensado pelo Jornal de Angola à primeira manifestação coordenada da oposição contra o aumento dos combustíveis realizada em Luanda (11.03.2000) ilustra bem este “atrelamento” à estratégia governamental.
Para uma manifestação onde estiveram à vontade cerca de 1000 pessoas que já era muito pouco para uma cidade de três milhões de habitantes, o Jornal de Angola reduziu drasticamente o número dos participantes para “pouco mais de 100”.

A informação privada, com todas as condicionantes decorrentes do seu limitado alcance em termos de cobertura nacional, tem sabido conduzir-se de uma forma mais independente e actuante, o que já levou o Presidente Eduardo dos Santos a reconhecer o seu papel na sociedade.
Tal observação, vinda da parte de quem veio, não deixa de ser importante tendo em conta anteriores considerações menos simpáticas do dirigente angolano em relação ao papel dos jornalistas.

Por estar basicamente concentrada em Luanda, onde funciona o centro do poder, a média privada é hoje a grande referência de todas as conversas particularmente ao nível da classe política.
Apesar de ser muito mal vista pelos representantes do poder, estes estão cada vez mais atentos às suas matérias que já estiveram na origem de algumas decisões tomadas pelo executivo.

O acalorado debate realizado em Janeiro 2000 na Assembleia Nacional sobre a liberdade de imprensa, atesta bem a importância que ela atingiu em Angola.
Como resultado deste debate o parlamento recomendou o governo “ a formulação e adopção de uma adequada estratégia de desenvolvimento da comunicação social nacional, pública e privada, incluíndo o fomento da imprensa regional, assim como o estudo de formas de subsídios e isenções a conceder à mesma”. (2)

A imprensa tem contribuído bastante para travar os excessos das autoridades, particularmente no domínio da violação dos direitos humanos que continuam a ser constantes, numa sociedade onde os índices de violência aumentam todos os dias.

O cidadão comum prefere primeiro falar aos órgãos de informação para denunciar qualquer situação que esteja a lesar os seus interesses, do que recorrer aos órgãos de administração da justiça.
A experiência angolana já demonstrou que uma denúncia pública através da imprensa tem resolvido melhor os seus problemas, pelo menos de forma mais célere.

 Numa sociedade com as características da angolana, onde as instituições funcionam bastante mal, onde os direitos individuais dos cidadãos são todos os dias atropelados, onde o critério político (filiação ou simpatia partidária) ainda é fundamental para se avaliar quase todo o tipo de situações, a imprensa é hoje a grande alternativa que os cidadãos e a sociedade civil têm à sua mão para fazerem valer os seus direitos e os seus pontos de vista.

Os partidos políticos da oposição que hoje são os grandes críticos do controlo que o partido no poder detém sobre a comunicação social estatal, devem igualmente à média privada o pouco espaço de intervenção que ainda vão conseguido obter para manifestarem as suas posições sem o receio de verem os seus pontos de vista truncados ou censurados, como tem acontecido vezes sem conta quando são objecto de algum tratamento nos órgãos estatais.

 


O papel da comunicação social no combate à violência contra as crianças (Junho 1998)*


1-O jornalista devia ser por vocação solidário com as grandes causas da sociedade civil, entendida esta, como o conjunto de homens, mulheres, velhos, jovens e crianças que se movimentam activamente através da mais diferentes organizações e associações não-governamentais/ não partidárias com projectos de intervenção orientados, fundamentalmente, para o apoio e promoção das comunidades.

Uma movimentação independente que, apesar de evitar rotas de colisão, faz questão de manter uma distância critica em relação aos principais centros do jogo do poder institucionalizado, o que em principio não tem nada a ver com nenhuma postura de ruptura ou de oposição global. 

Antes pelo contrário, pois o movimento em causa também tem como referências importantes para a sua acção e sobrevivência, o diálogo, a concertação, a colaboração e a partilha de responsabilidades com todas as restantes estruturas sócio-politicas existentes .

Trata-se apenas de trabalhar em paralelo, sem uma estratégia virada para a conquista do poder, tendo como preocupação fundamental uma participação eficaz e desinteressada na resolução dos grandes e pequenos problemas que afectam a sociedade, sendo, naturalmente, um deles a situação particularmente dramática em que se encontram as crianças angolanas.

Pelas suas características é uma movimentação que devia suscitar da parte dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social toda a atenção possível em matéria de cobertura, no âmbito do chamado jornalismo cívico, o que nem sempre acontece, para não fazermos outras considerações menos simpáticas em relação a algumas prioridades editoriais.

Prioridades que privilegiam o supérfluo em detrimento do essencial, que ignoram o dia-a-dia do cidadão comum para se preocuparem quase exclusivamente com a actividade oficial, com a propaganda governamental, com a intriga política, quantas vezes de costas completamente voltadas para os grandes dramas sociais, onde, a violência multifacetada que hoje atinge as crianças angolanas, assume proporções cada vez mais alarmantes.

2-Na nossa sociedade, para a maior parte dos nossos baixinhos, ser criança há muito que deixou de ser o período da vida mais protegido, mais despreocupado, mais inocente e mais feliz da vida de um ser humano.

Ser criança hoje em Angola é um dos maiores problemas que se pode ter na vida, fundamentalmente, devido à irresponsabilidade dos adultos, que apostaram na guerra como solução para resolver os problemas nacionais, como se fingissem não saber que a guerra, por si só, é o maior problema que muito dificilmente é capaz de resolver outros problemas devido a sua própria natureza problemática e profundamente traumática.

A guerra, pelo menos entre nós, já provou que só cria problemas ainda maiores do que aqueles que se propunha dar solução.

Para a desgraça das nossas crianças, a irresponsabilidade dos adultos já se transformou numa incapacidade crónica de criar em Angola o mínimo de condições para que a vida faça sentido e tenha o seu curso normal desde que, com nove meses (ou menos), somos convidados ou forçados pela mãe natureza a abandonar o estado fetal.

É assim que entramos na escola da vida sem ninguém nos ter consultado previamente, nomeadamente, em relação ao país que gostaríamos de escolher para viver.

Entre os problemas que as crianças hoje enfrentam em Angola, a violência é, sem dúvida, o mais dramático e mais abrangente, pois já é, por assim dizer, uma “maka ecológica” de grandes proporções.
Uma verdadeira catástrofe nacional.

Para um número crescente de crianças angolanas a sua condição etária começa por ser a primeira causa que explica sua grande infelicidade e sofrimento.

Sendo a camada mais vulnerável de qualquer pirâmide social, as crianças são, possivelmente, a faixa etária que mais é afectada por todas as maleitas que ocorrem em determinado país que esteja a viver uma situação de profunda crise generalizada, como é o caso paradigmático de Angola.

É pois para a violência contra as crianças que entre nós assume as mais diversas formas, com a violência institucional a liderar as sondagens, que os médias devem orientar de forma particularmente acutilante as suas atenções, se estiverem de facto interessados em desempenhar um papel positivo na luta mais geral que hoje se trava um pouco por todo o lado contra todas as violações dos direitos humanos.

Trata-se de uma luta que em Angola deve ganhar toda a pioridade à luz do assustador património de violência que o país possui nas suas entranhas e que volta e meia faz a sua aparição em grande plano, a par das suas manifestações mais diárias, que muita pouca atenção, salvo raras excepções, merecem da opinião pública, que parece estar a viver já uma fase de anestesia geral, no âmbito da banalização do que é anormal ou, se quiserem, da inversão dos valores.

3-No seu recente relatório sobre as fontes dos conflitos em África e as razões que explicam a sua persistência, o Secretário-Geral das Nações Unidas Koffi Anan disse que uma especial atenção deve ser prestada às necessidades das crianças que vivem em zonas afectadas pelo flagelo da guerra.

Anan citou para o efeito, como primeiro importante passo tendo em vista uma abordagem internacional da problemática da violência contra os mais novos, as conclusões do trabalho sobre o impacto dos conflitos armados nas crianças, realizado pela senhora Graça Machel, hoje Graça Mandela, na sua condição de representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas.

De notar que a actual Primeira-Dama Sul-Africana, no âmbito da elaboração do seu relatório, visitou o nosso país, onde, ao que parece, terá sido particularmente inspirada/tocada pela triste realidade das crianças angolanas para produzir as suas conclusões mais preocupantes.

O relatório em causa define as crianças como “zonas de paz”, conceito que o Secretário-Geral das Nações Unidas quer ver urgentemente expandido e adoptado à escala planetária para os mais variados efeitos.

Embora em termos de aplicação este conceito tenha mais a ver com situações de conflito aberto, e enquanto se aguarda que a situação em Angola se esclareça melhor, pois, sem ser ainda de guerra declarada é cada vez menos de paz definitiva, é perfeitamente aceitável a sua utilização entre nós.

Pensemos pois nas crianças angolanas como “zonas de paz” para, como jornalistas, declararmos guerra aberta a todos aqueles que em plena luz do dia ou na calada da noite têm a mira das suas armas apontadas para elas.

Fruto de toda a conjuntura que se conhece, Luanda é hoje palco de incríveis e terríveis cenas quotidianas de violência onde as vítimas são crianças de ambos os sexos, mas também já são elas, quantas vezes, as próprias protagonistas da violência, visíveis nos famosos e sangrentos “bilos”(1) que vão acontecendo um pouco pelos quatro cantos desta urbe tresloucada.

Como é evidente, a maior violência que se abate sobre as crianças para além da guerra, é a da própria incapacidade do Estado em dar satisfação às necessidades mais elementares da sociedade de uma forma geral e que se reflecte na situação das famílias.
Uma incapacidade que está na origem da consolidação do fenómeno crianças de rua ou na rua, onde os problemas de violência são mais pronunciados a carecer de uma intervenção urgente.

4-É neste contexto que os médias são chamados a desempenhar um importante papel, dando toda a cobertura possível, naturalmente dentro das normas exigidas pela deontologia profissional, às denúncias que se fazem sobre as actuações truculentas dos agentes da administração e de cidadãos prepotentes, entre muitas outras que integram o dia-a-dia deste espectáculo impróprio para menores.

Os jornalistas e os médias não estão em condições de resolverem um problema tão complexo como é o da violência contra as crianças, mas com a sua actuação frontal e corajosa podem ajudar a contê-la dentro de limites mais aceitáveis, do que são aqueles que hoje assistimos.

Por mais convictos que possam ser os mentores e os autores da violência, eles não irão nunca assumir os seus actos ou querer ver os seus nomes ligados às suas “façanhas”, por razões óbvias.
Em todo o lado continua a ser muito feio bater ou abusar sexualmente de uma criança, sobretudo se tal desempenho se tornar conhecido da opinião pública, o que só será possível através da comunicação social.

Por tudo quanto se sabe do actual modus vivendi e operandi da sociedade angolana, não seria um exagero afirmar aqui que, a curto prazo, a única barreira existente para enfrentar com algum êxito todos aqueles que hoje violentam menores, passa necessariamente pela comunicação social e pela sua capacidade de fazer “barulho”.

É o único “barulho” que ainda tem possibilidade de assustar os algozes; de fazer com que eles recuem; que eles se afastem das suas presas; mesmo que seja apenas temporariamente, numa altura em que o silêncio é sem dúvida a melhor colaboração que pode ser prestada aos inimigos das crianças desprotegidas.

Identificadas que estão as causas e os principais agentes da violência que hoje se abate sobre as crianças que vivem em situações particularmente difíceis em Luanda e noutros centros urbanos do país, facilmente chegamos a conclusão que de facto também aqui “quem não chora não mama”. Só que já não resulta chorar/soluçar em silêncio.

É preciso amplificar este choro, para que ele seja ouvido em toda a cidade.
Para que ele saia das vielas escuras onde o crime campeia e a violência se banaliza para entrar nas casas de todos com a força da denúncia pública de preferência bem identificada.

Só a comunicação social está em condições de operar um tal milagre sem haver necessidade de grandes investimentos, embora saibamos à partida que o milagre será superficial, pois a violência na nossa sociedade já é estrutural.

Isto quer dizer que um aparente recuo estatístico de casos de violência como resultado de alguma acção mediática mais concertada, pode não ter um grande significado em matéria de alteração mais sustentada do comportamento social dos protagonistas.
A alteração estrutural exige muito mais.
Tem a ver com um conjunto de factores que nos ultrapassam enquanto parte de um todo.
Não será para hoje, nem para amanhã, nem para o próximo ano.

Trabalhemos para já, apenas com o objectivo de alterarmos a curto prazo a conjuntura ou pelo menos de conseguirmos que ela deixe de ser tão agressiva, tão desumana, tão insensível para com as crianças.
Isto é possível.

Uma das soluções passa, como já referimos, por um acompanhamento mais sistemático das ONGs que trabalham com as crianças, pois elas são, antes de mais, privilegiadas fontes de informação sobre a problemática da violência contra as crianças.
Por seu lado, numa perspectiva interactiva, as ONGs devem procurar fazer chegar aos médias toda a informação sempre que lhes for possível, procurando em cada órgão sensibilizar algum jornalista em particular que se mostre mais próximo da problemática infantil.

Uma outra solução para dar uma maior visibilidade ao dossier violência contra as crianças deverá ser a criação de um programa de rádio do tipo “livro de reclamações” especialmente dirigido para a divulgação de queixas relacionadas com actos de violência contra as crianças, mas não só. Seria uma espécie de Rádio SOS crianças.
Tendo em vista uma maior cobertura em termos de espaço nacional, poderia optar-se pela elaboração de um programa que fosse transmitido pelas várias rádios que já operam no país.

É um projecto perfeitamente viável que poderia juntar o conjunto das ONGs que trabalham com as crianças, numa altura em que a existência de rádios privadas é, à partida, uma garantia de maior a abertura e transparência informativa.

Esta parece ser uma intervenção perfeitamente exequível no âmbito da contribuição que a comunicação social pode dar na luta contra a violência que hoje as crianças sem eira nem beira são vítimas um pouco por todo o lado.

É preciso que as crianças excluídas e violentadas façam ouvir a sua voz todos os dias, pois esta sociedade, sobretudo ao nível dos poderes públicos já não reage a histórias pontuais, que passam rapidamente ao esquecimento.
É preciso acreditar que a água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
É aí que os jornalistas e a comunicação social podem fazer de imediato alguma coisa, o que, aliás, já têm feito.

* Texto da comunicação apresentada pelo autor durante o seminário promovido pelo FISH sobre a violência contra as crianças, que decorreu em Luanda entre os dias 20 e 23 de Julho 1998.