1-O jornalista devia ser por
vocação solidário com as grandes causas da sociedade civil, entendida esta,
como o conjunto de homens, mulheres, velhos, jovens e crianças que se
movimentam activamente através da mais diferentes organizações e associações
não-governamentais/ não partidárias com projectos de intervenção orientados, fundamentalmente,
para o apoio e promoção das comunidades.
Uma movimentação independente
que, apesar de evitar rotas de colisão, faz questão de manter uma distância
critica em relação aos principais centros do jogo do poder institucionalizado,
o que em principio não tem nada a ver com nenhuma postura de ruptura ou de
oposição global.
Antes pelo contrário, pois o
movimento em causa também tem como referências importantes para a sua acção e
sobrevivência, o diálogo, a concertação, a colaboração e a partilha de responsabilidades
com todas as restantes estruturas sócio-politicas existentes .
Trata-se apenas de trabalhar
em paralelo, sem uma estratégia virada para a conquista do poder, tendo como
preocupação fundamental uma participação eficaz e desinteressada na resolução
dos grandes e pequenos problemas que afectam a sociedade, sendo, naturalmente,
um deles a situação particularmente dramática em que se encontram as crianças
angolanas.
Pelas suas características é
uma movimentação que devia suscitar da parte dos jornalistas e dos órgãos de
comunicação social toda a atenção possível em matéria de cobertura, no âmbito
do chamado jornalismo cívico, o que nem sempre acontece, para não fazermos
outras considerações menos simpáticas em relação a algumas prioridades editoriais.
Prioridades que privilegiam o
supérfluo em detrimento do essencial, que ignoram o dia-a-dia do cidadão comum
para se preocuparem quase exclusivamente com a actividade oficial, com a
propaganda governamental, com a intriga política, quantas vezes de costas
completamente voltadas para os grandes dramas sociais, onde, a violência
multifacetada que hoje atinge as crianças angolanas, assume proporções cada vez
mais alarmantes.
2-Na nossa sociedade, para a
maior parte dos nossos baixinhos, ser
criança há muito que deixou de ser o período da vida mais protegido, mais
despreocupado, mais inocente e mais feliz da vida de um ser humano.
Ser criança hoje em Angola é
um dos maiores problemas que se pode ter na vida, fundamentalmente, devido à
irresponsabilidade dos adultos, que apostaram na guerra como solução para
resolver os problemas nacionais, como se fingissem não saber que a guerra, por
si só, é o maior problema que muito dificilmente é capaz de resolver outros
problemas devido a sua própria natureza problemática e profundamente
traumática.
A guerra, pelo menos entre
nós, já provou que só cria problemas ainda maiores do que aqueles que se
propunha dar solução.
Para a desgraça das nossas
crianças, a irresponsabilidade dos adultos já se transformou numa incapacidade
crónica de criar em Angola o mínimo de condições para que a vida faça sentido e
tenha o seu curso normal desde que, com nove meses (ou menos), somos convidados
ou forçados pela mãe natureza a abandonar o estado fetal.
É assim que entramos na
escola da vida sem ninguém nos ter consultado previamente, nomeadamente, em
relação ao país que gostaríamos de escolher para viver.
Entre os problemas que as
crianças hoje enfrentam em Angola, a violência é, sem dúvida, o mais dramático
e mais abrangente, pois já é, por assim dizer, uma “maka ecológica” de grandes
proporções.
Uma verdadeira catástrofe nacional.
Para um número crescente de
crianças angolanas a sua condição etária começa por ser a primeira causa que
explica sua grande infelicidade e sofrimento.
Sendo a camada mais
vulnerável de qualquer pirâmide social, as crianças são, possivelmente, a faixa
etária que mais é afectada por todas as maleitas que ocorrem em determinado
país que esteja a viver uma situação de profunda crise generalizada, como é o
caso paradigmático de Angola.
É pois para a violência
contra as crianças que entre nós assume as mais diversas formas, com a
violência institucional a liderar as sondagens, que os médias devem orientar de
forma particularmente acutilante as suas atenções, se estiverem de facto
interessados em desempenhar um papel positivo na luta mais geral que hoje se
trava um pouco por todo o lado contra todas as violações dos direitos humanos.
Trata-se de uma luta que em
Angola deve ganhar toda a pioridade à luz do assustador património de violência
que o país possui nas suas entranhas e que volta e meia faz a sua aparição em
grande plano, a par das suas manifestações mais diárias, que muita pouca
atenção, salvo raras excepções, merecem da opinião pública, que parece estar a viver
já uma fase de anestesia geral, no âmbito da banalização do que é anormal ou,
se quiserem, da inversão dos valores.
3-No seu
recente relatório sobre as fontes dos conflitos em África e as razões que
explicam a sua persistência, o Secretário-Geral das Nações Unidas Koffi Anan
disse que uma especial atenção deve ser prestada às necessidades das crianças
que vivem em zonas afectadas pelo flagelo da guerra.
Anan citou para o efeito,
como primeiro importante passo tendo em vista uma abordagem internacional da
problemática da violência contra os mais novos, as conclusões do trabalho sobre
o impacto dos conflitos armados nas crianças, realizado pela senhora Graça
Machel, hoje Graça Mandela, na sua condição de representante especial do
Secretário-Geral das Nações Unidas.
De notar que a actual
Primeira-Dama Sul-Africana, no âmbito da elaboração do seu relatório, visitou o
nosso país, onde, ao que parece, terá sido particularmente inspirada/tocada
pela triste realidade das crianças angolanas para produzir as suas conclusões
mais preocupantes.
O relatório em causa define
as crianças como “zonas de paz”, conceito que o Secretário-Geral das Nações
Unidas quer ver urgentemente expandido e adoptado à escala planetária para os
mais variados efeitos.
Embora em termos de aplicação
este conceito tenha mais a ver com situações de conflito aberto, e enquanto se
aguarda que a situação em Angola se esclareça melhor, pois, sem ser ainda de
guerra declarada é cada vez menos de paz definitiva, é perfeitamente aceitável
a sua utilização entre nós.
Pensemos pois nas crianças
angolanas como “zonas de paz” para, como jornalistas, declararmos guerra aberta
a todos aqueles que em plena luz do dia ou na calada da noite têm a mira das
suas armas apontadas para elas.
Fruto de toda a conjuntura
que se conhece, Luanda é hoje palco de incríveis e terríveis cenas quotidianas
de violência onde as vítimas são crianças de ambos os sexos, mas também já são
elas, quantas vezes, as próprias protagonistas da violência, visíveis nos
famosos e sangrentos “bilos”(1) que vão acontecendo um pouco pelos
quatro cantos desta urbe tresloucada.
Como é evidente, a maior
violência que se abate sobre as crianças para além da guerra, é a da própria
incapacidade do Estado em dar satisfação às necessidades mais elementares da
sociedade de uma forma geral e que se reflecte na situação das famílias.
Uma incapacidade que está na origem da consolidação do fenómeno crianças de rua
ou na rua, onde os problemas de violência são mais pronunciados a carecer de
uma intervenção urgente.
4-É neste
contexto que os médias são chamados a
desempenhar um importante papel, dando toda a cobertura possível, naturalmente
dentro das normas exigidas pela deontologia profissional, às denúncias que se
fazem sobre as actuações truculentas dos agentes da administração e de cidadãos
prepotentes, entre muitas outras que integram o dia-a-dia deste espectáculo
impróprio para menores.
Os jornalistas e os médias não estão em condições de
resolverem um problema tão complexo como é o da violência contra as crianças,
mas com a sua actuação frontal e corajosa podem ajudar a contê-la dentro de
limites mais aceitáveis, do que são aqueles que hoje assistimos.
Por mais convictos que possam
ser os mentores e os autores da violência, eles não irão nunca assumir os seus
actos ou querer ver os seus nomes ligados às suas “façanhas”, por razões
óbvias.
Em todo o lado continua a ser muito feio bater ou abusar sexualmente de uma
criança, sobretudo se tal desempenho se tornar conhecido da opinião pública, o
que só será possível através da comunicação social.
Por tudo quanto se sabe do
actual modus vivendi e operandi da sociedade angolana, não
seria um exagero afirmar aqui que, a curto prazo, a única barreira existente
para enfrentar com algum êxito todos aqueles que hoje violentam menores, passa
necessariamente pela comunicação social e pela sua capacidade de fazer “barulho”.
É o único “barulho” que ainda
tem possibilidade de assustar os algozes; de fazer com que eles recuem; que
eles se afastem das suas presas; mesmo que seja apenas temporariamente, numa
altura em que o silêncio é sem dúvida a melhor colaboração que pode ser
prestada aos inimigos das crianças desprotegidas.
Identificadas que estão as
causas e os principais agentes da violência que hoje se abate sobre as crianças
que vivem em situações particularmente difíceis em Luanda e noutros centros
urbanos do país, facilmente chegamos a conclusão que de facto também aqui “quem
não chora não mama”. Só que já não resulta chorar/soluçar em silêncio.
É preciso amplificar este
choro, para que ele seja ouvido em toda a cidade.
Para que ele saia das vielas escuras onde o crime campeia e a violência se
banaliza para entrar nas casas de todos com a força da denúncia pública de
preferência bem identificada.
Só a comunicação social está
em condições de operar um tal milagre
sem haver necessidade de grandes investimentos, embora saibamos à partida que o
milagre será superficial, pois a violência na nossa sociedade já é estrutural.
Isto quer dizer que um
aparente recuo estatístico de casos de violência como resultado de alguma acção
mediática mais concertada, pode não ter um grande significado em matéria de
alteração mais sustentada do comportamento social dos protagonistas.
A alteração estrutural exige muito mais.
Tem a ver com um conjunto de factores que nos ultrapassam enquanto parte de um
todo.
Não será para hoje, nem para amanhã, nem para o próximo ano.
Trabalhemos para já, apenas
com o objectivo de alterarmos a curto prazo a conjuntura ou pelo menos de
conseguirmos que ela deixe de ser tão agressiva, tão desumana, tão insensível
para com as crianças.
Isto é possível.
Uma das soluções passa, como
já referimos, por um acompanhamento mais sistemático das ONGs que trabalham com
as crianças, pois elas são, antes de mais, privilegiadas fontes de informação
sobre a problemática da violência contra as crianças.
Por seu lado, numa perspectiva interactiva, as ONGs devem procurar fazer chegar
aos médias toda a informação sempre
que lhes for possível, procurando em cada órgão sensibilizar algum jornalista
em particular que se mostre mais próximo da problemática infantil.
Uma outra solução para dar
uma maior visibilidade ao dossier violência contra as crianças deverá ser a
criação de um programa de rádio do tipo “livro de reclamações” especialmente
dirigido para a divulgação de queixas relacionadas com actos de violência
contra as crianças, mas não só. Seria uma espécie de Rádio SOS crianças.
Tendo em vista uma maior cobertura em termos de espaço nacional, poderia
optar-se pela elaboração de um programa que fosse transmitido pelas várias
rádios que já operam no país.
É um projecto perfeitamente
viável que poderia juntar o conjunto das ONGs que trabalham com as crianças,
numa altura em que a existência de rádios privadas é, à partida, uma garantia
de maior a abertura e transparência informativa.
Esta parece ser uma
intervenção perfeitamente exequível no âmbito da contribuição que a comunicação
social pode dar na luta contra a violência que hoje as crianças sem eira nem
beira são vítimas um pouco por todo o lado.
É preciso que as crianças
excluídas e violentadas façam ouvir a sua voz todos os dias, pois esta
sociedade, sobretudo ao nível dos poderes públicos já não reage a histórias
pontuais, que passam rapidamente ao esquecimento.
É preciso acreditar que a água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
É aí que os jornalistas e a comunicação social podem fazer de imediato alguma
coisa, o que, aliás, já têm feito.
* Texto da comunicação apresentada pelo autor durante o seminário promovido
pelo FISH sobre a violência contra as crianças, que decorreu em Luanda entre os
dias 20 e 23 de Julho 1998.