segunda-feira, 7 de julho de 2014

Dois "seguros" obrigatórios e um "paraíso fiscal"

O mês de Julho entrou para as nossas sempre atribuladas vidas com dois seguros obrigatórios, com ou sem aspas.
É melhor que cada um dos "consumidores"  faça o melhor uso delas e as coloque onde achar que as mesmas ficam melhor, para fazer passar a mensagem da ambivalência, que as aspas sempre permitem em defesa, nomeadamente, do "atacante" de serviço.
O primeiro tem a ver com os "pululos"*, enquanto o segundo visa identificar de forma legal e o mais segura possível, os próprios "cabombas"*, numa iniciativa inédita da tutela, que assim dá inicio a um novo processo de "decantação" dos milhares de efectivos que fazem parte das suas intermináveis folhas salariais.
Inédita, porque a partir deste mês, os policias e outros agentes da ordem só podem interpelar os cidadãos com a nova placa ao peito, onde figura o nome do camarada e o seu numero mecanográfico.
De outra forma, o cidadão tem o direito "administrativo" de se recusar a ser identificado pelos "azulinhos", que deste modo são desde logo conhecidos.
Tal exposição permite conduzir melhor eventuais queixas ou reclamações, quando o cidadão se achar no direito de assim proceder, o que tem como efeito a "produção" de uma pressão maior sobre o comportamento do policia, com todas as consequências daí resultantes que nos parecem positivas no âmbito dos objectivos pretendidos pelo Ministério do Interior.
Como é evidente, não tardarão a surgir placas falsas ou usadas de forma fraudulenta, mas isto são contas de um outro rosário que hoje ainda não são para aqui chamadas.
O primeiro seguro que já existia há pelo menos quatro anos, o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, também conhecido como o seguro contra terceiros, tinha sido na prática desactivado, "através" da falta de fiscalização, que é, curiosamente, aquela que mais temos em quantidade, mas é, sintomaticamente, aquela que pior funciona em qualidade, quando aparece.
Apesar de ser obrigatório, este seguro quase que estava já em vias de extinção, antes do mesmo se ter afirmado no mercado.
Era uma espécie de nado-morto, até que as seguradoras resolveram fazer ainda mais barulho e depois do meu amigo Aguiar mais o seu Instituto terem sido "chicoteados", para darem lugar a entrada em cena de um outro meu amigo, o "gato" Aguinaldo Jaime com a "sua" nova Agência.
Esperemos que a partir de agora haja mais informação/prestação de contas  sobre o "embarrado" Fundo de Garantia Automóvel (FAG) que é constituído por uma percentagem da massa que os proprietários de "rucas",* que somos todos nós, pagam, quando liquidam as suas apólices junto das seguradoras.
Estas depois, por obrigação legal, têm de fazer seguir o "kumbú" para o FAG, isto é, para o Estado.
["O Fundo de Garantia Automóvel, mecanismo indissociável do Seguro
Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel é um instrumento
especializado para garantir o ressarcimento dos sinistrados em situações de  ausência do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e outras especificas(...)]
Será mais um fundo de milhões que anda "desaparecido em combate"? O que é facto, é que não nos lembramos de ter lido algum relatório do mesmo, o que não quer dizer que tal prestação de contas não tenha sido feita.
Seja como for, o FAG não é de certeza um "camarada" muito conhecido da opinião pública e publicada.
Logo logo, ficaremos a saber mais sobre ele, pois agora nesta segunda vida do seguro automóvel obrigatório, haverá de certeza por parte da imprensa, mas não só, uma maior atenção ao desempenho deste produto, com o qual todos estamos de acordo, tendo em conta a sua evidente bondade, mas nem todos na prática agimos em conformidade dos dois lados da barricada.
Como se sabe os patrões desta industria gostam mais de receber o dinheiro dos prémios, do que pagar as consequências dos riscos segurados.
Angola já é considerado um "paraíso fiscal", não só porque os que mais ganham, isto é, os que têm mais lucros, os tais milionários, são os que menos pagam impostos, mas também porque será o país que mais fiscais físicos terá por metro quadrado.
 O exército de fiscais que o país possui, incluindo os membros da policia e da tropa, é verdadeiramente assombroso, estando já em curso, ao que julgo saber, uma segunda reforma fiscal, concluído que está o PERT, para racionalizar as instituições da fiscalização propriamente dita e que se encontram espalhadas por quase todos os ministérios e administrações.
Mais em privado, já me confessei numa outra ocasião que um dos maiores pesadelos que tenho quando sonho em ser empresário é com os fiscais a acordarem-me ao meio da noite para quererem saber se o WC do escritório tem bidé ou não.
No pesadelo eu  tento convencer-lhes que para os devidos efeitos a instalação sanitária não precisa de um tal vaso, porque as senhoras não vão de certeza ter necessidade de o utilizar.
Comecei a ter este pesadelo, depois de um amigo meu, que é mesmo empresário, me ter contado que os "camaradas" que foram inspeccionar a instalação onde pretendia dar inicio ao seu negócio, se recusaram a fazê-lo, porque o quarto de banho não possuía a terceira peça.
Como ele não quis pagar a "taxa de urgência/gasosa", não lhe foi passada a competente autorização. O seu negócio era uma escola de condução.
Por causa dos fiscais mas não só, pelo menos nesta prolongada legislatura que estamos com ela, não está nos meus planos ser empresário de verdade, sendo a ocupação/profissão que tenho aquela que mais se adapta ao meu temperamento e a minha falta de pachorra para lidar com este mundo dos negócios que tem demasiados "anões", para os meus gostos de "girafa".

 NA- Texto publicado no semanário "O País/Revista Vida/Secos e Molhado" (4-07-14)

 *Pululos/Rucas- Automóveis
*Cambombas-Polícias

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Morreu o filósofo da nossa dikanza


Definitivamente, desapareceu do nosso mundo e da nossa eterna Vila-Alice, o Dikota Malé Malamba.
Era assim como era conhecido entre os seus contemporâneos, este ilustre angolano que não mais voltaremos a ver passar em frente da nossa casa, com o seu passo firme e o seu olhar determinado, a fazer lembra-nos um militar a desfilar com qualquer coisa de muito especial e harmoniosa, pela forma ondulada como caminhava.
Tinha a impressão que o seu meio de transporte preferido eram as suas próprias pernas, opção que o meu falecido pai também partilhava ao ponto de normalmente recusar todas as boleias que lhe ofereciam.
De seu nome completo José Oliveira de Fontes Pereira, o falecido podia ser um ilustre desconhecido para muito gente, sobretudo para a malta das novas gerações do pós-independência, mas não o era, certamente, para todos aqueles, que são cada vez em menor número, que conhecem bem a história da vida cultural luandense na sua vertente mais ligada à música e à dança.
Estamos a falar dos anos 50 e inicio dos anos 60.
Dava-me muito bem com este senhor.
Gostava muito dele.
Acredito pela forma atenciosa e extremamente educada como ele me tratava que a inversa também era totalmente verdadeira.
Pela forma mastigada como falava da Angola dos nossos dias, percebia-se que ele  não dizia tudo o que pensava, mas não era muito difícil adivinhar-lhe o pensamento todo, preenchido por insatisfações várias de alguém que gostava de ver o país seguir um outro rumo em matéria de valores, começando pelo desempenho ético das novas gerações.  
Desconfiava, por nunca mais me ter cruzado com ele na via pública que não andaria muito bem de saúde e pressentia que o pior podia acontecer a qualquer momento.
E aconteceu mesmo no passado domingo, 75 anos depois de Oliveira de Fontes Pereira ter nascido nesta antiga cidade de São Paulo de Assunção de Loanda, onde viria a brilhar como um dos mais dinâmicos produtores de cultura do seu tempo de juventude.
Malé Malamba fez da música, da dança e do carnaval os seus quintais preferidos onde soube como poucos exibir toda a sua criatividade e talento, com um legado que se calhar, só agora, após o seu desaparecimento será devidamente valorizado, com todas as honras que lhe são devidas pelo contributo dado ao desenvolvimento e enriquecimento e modernização da nossa matriz cultural.
A música popular urbana feita em Luanda tem certamente no seu DNA as impressões digitais de Oliveira de Fontes Pereira, pois alguns dos seus clássicos saíram-lhe da sua inspirada capacidade de compor com base na tradição mas já com os olhos postos na necessidade de renovar e modernizar o património herdado.
Há, entretanto, na nossa música algo que ele tratou com especial carinho e que dedicou grande parte da sua vida.
Este "algo" chama-se dikanza, vulgo reco-reco, designação que ele considerava imprópria para chamar o referido instrumento, que viria a ter no seu irmão mais velho o Euclides de Fontes Pereira, o Fontinhas do Ngola Ritmos um dos seus mais brilhantes executantes da nossa música popular, sem ignorar todos os outros.
Das conversas que com ele mantive em vida uma das delas ficou aprazada mas nunca cheguei a concretizá-la, lamentavelmente, pois agora já não será mais possível voltar a falar com ele.
Nessa conversa ele tinha a intenção de transmitir-me toda a sabedoria que tinha acumulado sobre a dikanza, estando eu na altura longe de imaginar que ele era o próprio artesão do instrumento que sabia confeccionar com as suas próprias mãos.
Felizmente que esta lacuna foi preenchida pelo Jomo Fortunato que o entrevistou várias vezes, tendo eu ficado a saber pela leitura de um dos seus textos tudo resto, em mais uma inestimável contribuição do meu confrade para a história da nossa cultura musical.
O ensaísta e crítico musical Jomo Fortunato é uma presença quase solitária nestas andanças, sendo já o seu trabalho uma referência incontornável quando queremos pesquisar seja o que for especialmente nas águas do semba e respectivos territórios anexos/conexos.
Fiquei assim a saber que Oliveira de Fontes Pereira foi de facto o filósofo da nossa dikanza, título que é da minha inteira responsabilidade e que é seguramente a melhor homenagem que lhe posso prestar nesta "hora di bai".
"A dikanza é um instrumento nobre de acompanhamento que se junta, de forma rítmica e harmónica, com a concertina, a viola, o kibabelo e o batuque"-Oliveira de Fontes Pereira dixit, citado no trabalho já referido.
Mas mais importante do que esta definição foi ter ficado a saber que o falecido tinha elaborado um manual para se construir uma boa e sonora dikanza em 18 passos.
Um manual que deixa para todos quantos queiram fazer a sua própria dikanza ou para aqueles que apenas estejam interessados em produzir este instrumento com fins mais comerciais.
Tudo começa com o corte o bordão no tamanho desejado, obtendo-se daí a altura ao que se segue o quebrar das arestas com lixa desbastadora número 40 ou 60 para depois se raspar o bordão com uma faca de aço e passar a lixa número 100 ou 120 sobre o bordão para estimular a inspiração na confecção e se obter uma superfície menos áspera.
A terminar os 18 "compassos" há que quebrar com uma faca as arestas na margem para não ferir os dedos e lixar toda a superfície côncava
para depois se forrar as bases interiores com serradura e cola branca.
Finalmente desenham-se os padrões nos punhos se deseja e fazem-se os polimentos dos punhos com verniz, de tipo celuloso ou sintético.
NA-Texto publicado no semanário "O País/Revista Vida/Secos e Molhados (27-06-14)"

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Criminalidade, estatísticas e "autísticas"


"O calar das armas foi conseguido a duras penas, numa altura em que novas guerras já se perfilam no horizonte imediato do país, sendo a crescente criminalidade urbana um dos sintomas mais preocupantes da explosão social latente (...)"
Esta constatação saiu-nos da lavra há 9 anos, mais exactamente em Agosto de 2005, quando nos associamos ao 10º aniversário da AJECO, para falar do jornalismo e dos desafios económicos e sociais de Angola.
De lá para cá, como é fácil de concluir, as coisas, pelo menos em Luanda onde vive mais de um quarto da nossa população, só se têm estado a agravar.
A tendência é preocupante o que quanto a nós deve atirar a nossa atenção antes de mais, para os resultados do modelo económico que está a ser implantado em Angola.
Não estabelecer este relacionamento é o primeiro sintoma de um "autismo" que já faz morada entre nós, onde alguns "cientistas sociais" se confundem muitas vezes com "militantes sociais", o que também não tem ajudado muito o país  a identificar problemas e a definir prioridades.
Valorizando na medida do possível todas as abordagens sociológicas sobre as causas da criminalidade em tese e na prática, algumas das quais tivemos a oportunidade de acompanhar no último "Debate Livre" da Zimbo, não temos qualquer dúvida em identificar, no caso angolano, a pobreza/miséria/exclusão social como sendo a principal.
A algumas milhas ficam todas as outras, que não devendo ser ignoradas, têm de ser necessariamente colocadas no seu devido lugar, sob pena de estarmos a confundir os alhos com os bugalhos.
A causa principal do aumento da criminalidade  mais violenta em Angola está devidamente localizada e de nada adianta estarmos a pintar a manta ou andarmos as voltas com outras "minudências". 
Por este trilho, até podemos conseguir amealhar uns pontos no debate e melhorar a nota na consideração de quem nos observa.
Em abono da verdade, esta recusa em olhar de frente, e com olhos de ver, para a dura realidade circundante não vai resolver nada por isso é que as coisas se estão a agravar.
A questão da ausência da família como pilar da sociedade ou da sua desestruturação, é ela própria já uma consequência da fragilidade sócio-económica que caracteriza o quotidiano da maior parte da população que vive na capital.
Como é que um pai pode exercer a sua autoridade familiar sobre a sua prole, se ele não consegue nem suprir as necessidades básicas dos seus filhos, que são cada vez mais exigentes, como consequência de toda a informação que absorvem sobre a "dolce vita" cá dentro e lá fora.
Neste contexto e como opção, resta-lhes a delinquência.
Oficialmente e no âmbito da actual estratégia de comunicação, tem-se estado a dar algum destaque às estatísticas que apontam para uma melhoria dos preocupantes  índices do nosso raquítico desenvolvimento humano (IDH), como o aumento da esperança média de vida, a redução da taxa de pobreza e da mortalidade materno-infantil.
Do lado das autoridades policiais e no âmbito da mesma estratégia, a utilização das estatísticas que supostamente reflectem uma redução da taxa da criminalidade, parece corresponder apenas a necessidade de contrariar politicamente o desgaste que a imagem do Executivo tem estado a sofrer com o noticiário mais "sangrento".
Nos últimos dias este noticiário voltou a chocar a sociedade luandense e muito particularmente a extensa comunidade católica com o violento assalto registado segunda-feira na Igreja de Santo António de Kifangondo do qual resultou o ferimento do pároco local e o roubo de todos os valores que os peregrinos haviam deixado por ocasião da romaria anual feita ao santuário.
No âmbito desta estratégia, a comparação da realidade angolana com o  que se passa noutros países é um outro recurso muito utilizado pelas fontes policiais e todos os "spin doctors" de serviço, quando se trata de tentar desdramatizar a realidade do crime violento em Angola.
O problema de todas estas estatísticas, é que elas acabam por ser de facto "autísticas", porque têm por base apenas as ocorrências/participações registadas pelas  esquadras e outras instituições similares.
Como é evidente, a maior parte das ocorrências/incidências deste "mercado" que está quase a virar "industria", segundo o sociólogo João Paulo Nganga, não chegam ao conhecimento de quem de direito, pelo que acabam por não ser reflectidas e muito menos traduzidas.
Esta evidência repousa, entre outros aspectos, na limitada cobertura policial de uma cidade que todos os dias engorda mais umas "casas" e todos os meses cresce mais uns "bairros".
Por outro lado há um conjunto muito substancial de incidências que muito dificilmente podem ser reflectidas nas estatísticas, mas que contribuem e de que maneira para o crescimento deste "mercado" feito de muito medo,  muita insegurança e muita improdutividade.
Quando as pessoas dizem que há recolher obrigatório no bairro provocado pela criminalidade, quando o comércio tem de fechar mais cedo, quando os transportes desaparecem, estes são "invisíveis correntes" que a estatística oficial não quer saber ou não quer valorizar devidamente na avaliação da criminalidade, mas que pesam e como pesam nas contas finais.
Por isso vivemos numa situação de bicefalia, com dois países a coabitarem no mesmo território.
O país oficial e o país real. O primeiro todos conhecemos mais ou menos bem. Do segundo todos temos uma ideia mais ou menos vaga. 
NA-Texto publicado no "PAÍS/Revista Vida/Secos e Molhados (20/06/14)"