Definitivamente, desapareceu do nosso mundo
e da nossa eterna Vila-Alice, o Dikota Malé Malamba.
Era assim como era conhecido entre os seus
contemporâneos, este ilustre angolano que não mais voltaremos a ver passar em
frente da nossa casa, com o seu passo firme e o seu olhar determinado, a fazer
lembra-nos um militar a desfilar com qualquer coisa de muito especial e
harmoniosa, pela forma ondulada como caminhava.
Tinha a impressão que o seu meio de transporte
preferido eram as suas próprias pernas, opção que o meu falecido pai também
partilhava ao ponto de normalmente recusar todas as boleias que lhe ofereciam.
De seu nome completo José Oliveira de Fontes
Pereira, o falecido podia ser um ilustre desconhecido para muito gente,
sobretudo para a malta das novas gerações do pós-independência, mas não o era,
certamente, para todos aqueles, que são cada vez em menor número, que conhecem bem
a história da vida cultural luandense na sua vertente mais ligada à música e à
dança.
Estamos a falar dos anos 50 e inicio dos anos 60.
Dava-me muito bem com este senhor.
Gostava muito dele.
Acredito pela forma atenciosa e extremamente
educada como ele me tratava que a inversa também era totalmente verdadeira.
Pela forma mastigada como falava da Angola dos
nossos dias, percebia-se que ele não
dizia tudo o que pensava, mas não era muito difícil adivinhar-lhe o pensamento
todo, preenchido por insatisfações várias de alguém que gostava de ver o país
seguir um outro rumo em matéria de valores, começando pelo desempenho ético das
novas gerações.
Desconfiava, por nunca mais me ter cruzado com ele
na via pública que não andaria muito bem de saúde e pressentia que o pior podia
acontecer a qualquer momento.
E aconteceu mesmo no passado domingo, 75 anos
depois de Oliveira de Fontes Pereira ter nascido nesta antiga cidade de São
Paulo de Assunção de Loanda, onde viria a brilhar como um dos mais dinâmicos produtores
de cultura do seu tempo de juventude.
Malé Malamba fez da música, da dança e do carnaval
os seus quintais preferidos onde soube como poucos exibir toda a sua
criatividade e talento, com um legado que se calhar, só agora, após o seu
desaparecimento será devidamente valorizado, com todas as honras que lhe são
devidas pelo contributo dado ao desenvolvimento e enriquecimento e modernização
da nossa matriz cultural.
A música popular urbana feita em Luanda tem
certamente no seu DNA as impressões digitais de Oliveira de Fontes Pereira,
pois alguns dos seus clássicos saíram-lhe da sua inspirada capacidade de compor
com base na tradição mas já com os olhos postos na necessidade de renovar e
modernizar o património herdado.
Há, entretanto, na nossa música algo que ele
tratou com especial carinho e que dedicou grande parte da sua vida.
Este "algo" chama-se dikanza, vulgo reco-reco, designação que ele considerava imprópria para chamar o referido instrumento, que viria a ter no seu irmão mais velho o Euclides de Fontes Pereira, o Fontinhas do Ngola Ritmos um dos seus mais brilhantes executantes da nossa música popular, sem ignorar todos os outros.
Das conversas que com ele mantive em vida uma das delas ficou aprazada mas nunca cheguei a concretizá-la, lamentavelmente, pois agora já não será mais possível voltar a falar com ele.
Este "algo" chama-se dikanza, vulgo reco-reco, designação que ele considerava imprópria para chamar o referido instrumento, que viria a ter no seu irmão mais velho o Euclides de Fontes Pereira, o Fontinhas do Ngola Ritmos um dos seus mais brilhantes executantes da nossa música popular, sem ignorar todos os outros.
Das conversas que com ele mantive em vida uma das delas ficou aprazada mas nunca cheguei a concretizá-la, lamentavelmente, pois agora já não será mais possível voltar a falar com ele.
Nessa conversa ele tinha a intenção de transmitir-me
toda a sabedoria que tinha acumulado sobre a dikanza, estando eu na altura
longe de imaginar que ele era o próprio artesão do instrumento que sabia
confeccionar com as suas próprias mãos.
Felizmente que esta lacuna foi preenchida pelo
Jomo Fortunato que o entrevistou várias vezes, tendo eu ficado a saber pela leitura
de um dos seus textos tudo resto, em mais uma inestimável contribuição do meu
confrade para a história da nossa cultura musical.
O ensaísta e crítico musical Jomo Fortunato
é uma presença quase solitária nestas andanças, sendo já o seu trabalho uma
referência incontornável quando queremos pesquisar seja o que for especialmente
nas águas do semba e respectivos territórios anexos/conexos.
Fiquei assim a saber que Oliveira de Fontes
Pereira foi de facto o filósofo da nossa dikanza, título que é da minha inteira
responsabilidade e que é seguramente a melhor homenagem que lhe posso prestar
nesta "hora di bai".
"A dikanza é um instrumento nobre de
acompanhamento que se junta, de forma rítmica e harmónica, com a concertina, a
viola, o kibabelo e o batuque"-Oliveira de Fontes Pereira dixit, citado no
trabalho já referido.
Mas mais importante do que esta definição foi ter
ficado a saber que o falecido tinha elaborado um manual para se construir uma
boa e sonora dikanza em 18 passos.
Um manual que deixa para todos quantos queiram
fazer a sua própria dikanza ou para aqueles que apenas estejam interessados em
produzir este instrumento com fins mais comerciais.
Tudo começa com o corte o bordão no tamanho
desejado, obtendo-se daí a altura ao que se segue o quebrar das arestas com
lixa desbastadora número 40 ou 60 para depois se raspar o bordão com uma faca
de aço e passar a lixa número 100 ou 120 sobre o bordão para estimular a
inspiração na confecção e se obter uma superfície menos áspera.
A terminar os 18 "compassos" há que quebrar
com uma faca as arestas na margem para não ferir os dedos e lixar toda a
superfície côncava
para depois se forrar as bases interiores com
serradura e cola branca.
Finalmente desenham-se os padrões nos punhos se
deseja e fazem-se os polimentos dos punhos com verniz, de tipo celuloso ou
sintético.
NA-Texto publicado no semanário "O País/Revista Vida/Secos e Molhados (27-06-14)"