quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A força demolidora do género

As recentes demolições de casas de cidadãos que habitam em zonas problemáticas (ou muito cobiçadas?) da nossa cidade e o seu “realojamento” forçado estão neste momento a ser capitaneadas por dois rostos femininos.
As referências desta actuação são os lamentáveis espectáculos que estão a ocorrer na Kinanga e nos últimos dias na Ilha do Cabo. São apenas os mais recentes de uma já longa história de atropelos e violências protagonizados pela administração contra os cidadãos mais pobres desta acolhedora urbe.
Na primeira linha do chocante confronto está a Administradora Municipal da Ingombota, Suzana de Melo, estando na sua retaguarda, a Governadora Francisca do Espírito Santo, que para já tem evitado “sujar” as suas mãos, o que de forma alguma lhe retira a responsabilidade política e moral pelo que se está a passar.
Depois de termos ouvido os choros e os gritos lancinantes da população da Kinanga, e ainda não refeitos do choque, fomos esta semana confrontados com os episódios ainda mais violentos e confrangedores da Ilha do Cabo, onde o implacável e desumano camartelo da administração, aproveitando a boleia das calemas, voltou a atacar com consequências ainda mais desastrosas e dramáticas, a ter em conta o número de famílias afectadas.
É caso, de facto, para se falar da força demolidora do género, com alguma propriedade e perplexidade, diante deste aparente paradoxo.
É (ou já era?) ponto mais ou menos assente que na política as mulheres têm muito mais sensibilidade do que os homens quando se trata de gerir problemáticas sociais sensíveis, particularmente aquelas que envolvam o respeito pelos universais direitos fundamentais do homem, que o Papá Bento XVI tanto falou em Luanda o mês passado. Pelos vistos e mesmo as do Papa, as palavras são mesmo para o vento as levar.
Claramente o que está em causa nestas e nas anteriores demolições, são, efectivamente, gravíssimas violações dos direitos humanos que nenhuma consciência sã pode ignorar ou tentar subestimar em nome de outras conveniências, de outros interesses, de outras ganâncias.
No seu comovente “Bairro Indígena”, Santocas cantou a destruição, nos finais dos anos 60 pelo opressivo governo colonial, daquela comunidade localizada na zona onde foi construída a Cidadela Desportiva de Luanda.
O realojamento da malta do antigo Bairro Indígena foi feita no Cassequel do Buraco em condições que são de facto um verdadeiro luxo quando comparadas com aquelas que estão a ser “oferecidas” às populações que nos últimos tempos estão a ser literalmente varridas pelo camartelo do Governo do MPLA.
De certeza que Santocas, um conhecido militante do maioritário, caso aceitasse o desafio, faria uma música um milhão de vezes muito mais comovente, se voltasse a cantar inspirado nas novas histórias das demolições e dos “realojamentos” que diariamente vão preenchendo os noticiários das estações privadas. As outras, as públicas, quando se referem (são forçadas) ao assunto fazem-no em termos quase institucionais, como autênticos porta-vozes do Governo demolidor, que é o que na prática são.
É nestas alturas que nos envergonhamos de termos escolhido o jornalismo como profissão e de estarmos todos metidos no mesmo saco.
Esta semana os relatos de alguns representantes das comunidades que viviam na Ilha do Cabo e que foram transferidas a toque de caixa para o deserto do Zango em camiões da Zagope, deixaram-nos ainda mais estarrecidos e perturbados na nossa sensibilidade humana, tendo em conta o conhecimento que todos temos, dos capítulos mais brutais da história contemporânea quando o homem se revelou o maior carrasco da sua própria espécie.
Mesmo tentando relativizar a comparação dos factos, acabamos por, na essência, não ver grandes diferenças entre o que se esta a passar na Ilha do Cabo (Bairro do Benfica) e os tais capítulos históricos mais brutais atrás referidos.
A essência é o respeito pela dignidade da pessoa humana e a protecção dos seus direitos fundamentais.
A essência é a defesa da vida contra a morte provocada.
Transferir centenas de famílias com crianças de tenra idade pelo meio para uma zona desértica sem qualquer tipo de infraestrutura social é um desterro da pior espécie com que a nossa sensibilidade não pode pactuar.

Aqui fica pois lavrado o nosso veemente protesto em defesa do género humano a que todos pertencemos.
Publicado no Angolense/Abril-2009