terça-feira, 28 de julho de 2020

Informação versus difamação (Dezembro 2007)*


A problemática que o binómio deste painel encerra, “Informação versus Difamação” dificilmente algum dia será resolvida a contento das partes, pois cada caso envolvendo este conflito será sempre um caso a ser analisado de per si, por mais que nos aproximemos de um consenso em torno do direito fundamental e estruturante do Estado Democrático que é a Liberdade de Imprensa e de Expressão (artigos 32 e 35) no seu relacionamento com os direitos de personalidade igualmente protegidos pela constituição no seu artigo 20º.
Enquanto a Liberdade de Imprensa não pode estar sujeita a qualquer censura, nomeadamente de natureza política, ideológica e artística,
os direitos de personalidade são fortemente protegidos pelo Código Penal no seu capítulo referente aos crimes contra a honra, que incluem a difamação, a calúnia e a injúria.
Sendo para os leigos quase a mesma coisa, estes três crimes têm, contudo, tipificações e molduras diferentes que convergem, entretanto, para o mesmo objectivo que é o de impedir a violação daquilo a que genericamente alguém definiu como sendo a nossa honra que é “o conjunto de atributos morais, físicos e intelectuais de uma pessoa, que a tornam merecedora de apreço no convívio social e que promovem a sua auto-estima”.
A questão que, de uma forma geral, todos os especialistas colocam na abordagem desta problemática tem a ver com a preponderância ou não de um direito sobre o outro quando a liberdade/expressão, que é de facto um direito fundamental, choca com o direito ao bom nome/reputação de alguém que decide recorrer aos tribunais para fazer valer a sua boa imagem, por mais desgastada que ela possa estar aos olhos da opinião pública e publicada.
Neste confronto em que a batata quente é atirada para as mãos dos juízes, as coisas complicam-se bastante para o jornalismo e os jornalistas, pois a procura da verdade em nome do interesse público, que tanto nos anima e atormenta, deixa de ser o critério fundamental, uma vez que do outro lado da barricada, do lado da defesa da honra, estão critérios absolutamente subjectivos mas que são igualmente tidos como legais/ legítimos.
É este pelo menos, o entendimento que o nosso ordenamento jurídico ainda tem desta problemática quando, por exemplo, só à título excepcional, admite a prova da verdade dos factos imputados num processo em que o jornalista é acusado de difamação.
Por outras palavras, isto quer dizer que o jornalista se pode transformar rapidamente num criminoso de delito comum, caso o juiz assim o entenda, apenas porque o queixoso se sentiu ofendido com uma determinada referência menos simpática para com a sua pessoa contida numa determinada matéria dada à estampa na imprensa.
Veremos mais adiante como é se pode difamar alguém no espírito da lei em vigor.
Importa aqui referir que alguns ordenamentos jurídicos e jurisprudências por este mundo afora já terão resolvido a bem este contencioso ao adoptarem o principio de que a verdade não pode ser ofensiva da honra de alguém e muito menos ser tida como matéria para um crime passível de condenação a vários meses de prisão e ao pagamento de pesadas multas que inviabilizam projectos e lançam no desemprego dezenas, senão mesmo, centenas de trabalhadores.
Neste âmbito, a Alemanha, onde prevalece a doutrina da prossecução de interesses legítimos que dá um conteúdo mais sólido à própria liberdade de imprensa, parece-nos ser o país que, ao nível da Europa, pelo que é do nosso conhecimento, melhor tem procurado estabelecer um equilíbrio adequado entre a protecção da personalidade e os direitos fundamentais da liberdade de expressão e de imprensa.
Parafrasearemos aqui o jurista alemão Lenckner, para com ele concordarmos que “o que aqui está em causa é a opção entre: fazer a imputação de um facto desonroso com o risco dele não poder ser comprovado ou omiti-la e, por vias disso, pôr eventualmente em perigo interesses legítimos. O interesse por uma protecção o mais compreensiva possível da honra entra assim em colisão com o interesse de publicitar factos que, numa consideração ex-ante, se revestem de significado para a prossecução de quaisquer interesses legítimos”. (1)
A jurisprudência alemã respondeu a esta preocupação com um muito sério aviso à navegação dos jornalistas e da comunicação social sem, contudo, pôr em causa o seu direito de informar e o da sociedade de ser informada livremente.
Foi assim devidamente valorizada a liberdade de imprensa como um direito estruturante do próprio projecto democrático desde que em causa esteja o interesse público.
A lei angolana diz, por exemplo, que a promoção da boa governação e a administração correcta da coisa pública é um dos fins que a imprensa deve prosseguir no quadro do interesse público que a doutrina alemã considera serem os interesses legítimos.
Tais interesses têm de estar suficientemente bem vincados para se evitarem as confusões com outras motivações mais pessoais ou de grupo que, lamentavelmente, continuam a alimentar a imprensa com um jornalismo de muito duvidosa qualidade, onde a devassa, a intriga, as acusações gratuitas, a desinformação, a intoxicação e a má-fé ainda são notas mais do que dominantes.
 “ Quem, para a prossecução de interesses legítimos quiser fazer imputações de factos susceptíveis de ferir a honra de outrem tem antes de se informar conscienciosamente sobre se estes factos são verdadeiros”.
“O jornalista só deve arriscar a notícia que atenta contra a honra de outrem depois de comprovar cuidadosamente a fiabilidade das suas fontes”.
Estas são apenas algumas das muitas referências que povoam os textos da jurisprudência alemã e que, certamente, nos ajudam a perceber como é que a honra é tratada naquele país quando a liberdade de informar entra em choque aberto com os direitos de personalidade.
Nesta apreciação do que se passa além-fronteiras, talvez seja interessante referir que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem feito pender a balança no sentido do predomínio da liberdade de expressão.
Em instância de último recurso, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (2) tem sido frequentemente chamado a dirimir situações de conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra e à reputação, nomeadamente, de políticos, outras pessoas com notoriedade social e instituições.
Contrariamente às jurisdições nacionais, mais comprometidas com a defesa destes valores, o Tribunal Europeu tem feito pender a balança no sentido do predomínio da liberdade de expressão.
Pode ler-se num dos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que “a liberdade de expressão vale não somente para as "informações" ou "ideias" favoráveis, inofensivas ou indiferentes mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam.
Esses princípios, prossegue o acórdão, “assumem particular importância no domínio da imprensa. Se ela não deve ultrapassar os limites fixados em vista, nomeadamente, da protecção da reputação de outrem, incumbe-lhe, contudo, transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral”.
No exercício da sua profissão tendo como principal ferramenta a liberdade de imprensa que se traduz no direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos, nem discriminações, o jornalista está entre nós diariamente confrontado com os limites resultantes da interpretação dos crimes contra a honra, sendo, sem dúvidas, o mais movediço deles o crime de difamação.
Movediço porque absolutamente subjectivo, não carecendo de qualquer prova material, pois basta a intenção ou a sua ausência, o denominado “animus difamandi”, para se ser condenado ou inocentado.
O crime de difamação será assim, possivelmente, aquele que mais choca com o direito fundamental que é a liberdade de imprensa/expressão, pois basta o juiz ser convencido pelo advogado da acusação que o jornalista teve a intenção de magoar o seu cliente, mesmo com a verdade dos factos, para tudo se complicar.
Como agravante, algo paradoxal, somos confrontados com a situação de, no exercício de um direito fundamental, o jornalista correr o sério risco de perder um outro ainda mais fundamental que é a sua própria liberdade.
Nas condições impróprias para o consumo humano que caracterizam o nosso universo carcerário, a perda de liberdade pode significar na prática uma penalização ainda mais severa que ameaçará, inclusivamente, a integridade física do condenado.
Os crimes contra a honra ou os direitos de personalidade foram parcialmente transferidos para a Lei de Imprensa onde são considerados crimes de abuso da liberdade de imprensa o que quer dizer que não houve qualquer evolução nem alteração na abordagem desta problemática mais específica que tem a ver com a descriminalização dos alegados excessos que se cometem no exercício da liberdade de imprensa e de expressão.
A ideia que muitos de nós defendemos neste debate aponta efectivamente para a substituição da tutela penal pela responsabilidade civil e disciplinar, numa altura em que a classe continua a não possuir nenhum mecanismo de auto-regulação, o que é absolutamente lamentável e em muito tem contribuído para o mau jornalismo que se faz entre nós.
Penso que, por exemplo, a retirada temporária ou mesmo definitiva da carteira profissional a um reincidente jornalista em actuações lesivas da ética e da deontologia, teria um impacto muito mais positivo na melhoria do nosso produto final do que o seu envio para uma cadeia infecta.
 Para darmos rapidamente a esta plateia uma ideia sobre como é que estes três legítimos obstáculos à liberdade de impressa/expressão se apresentam no nosso ordenamento jurídico diremos que a difamação consiste em imputar um facto ofensivo a honra e consideração de alguém ou reproduzindo a imputação. Na difamação para se ser condenado basta apenas escrever-se ou dizer-se que alguém foi trabalhar embriagado, enquanto que, na calúnia, para além da imputação do facto supostamente ofensivo, o mesmo tem de ser qualificado como crime e ser comprovada a sua falsidade.
Não basta pois dizer que alguém é bêbado mesmo que o seja pois a bebedeira em Angola não é um crime, não havendo por conseguinte lugar para a calúnia, ficando apenas de pé a difamação.
 Na injúria o crime contra honra consuma-se com a atribuição ao queixoso de uma qualidade negativa, como por exemplo, dizer-se ou escrever-se que alguém é um perfeito idiota, o que como se sabe é um recurso que se utiliza muito no debate político, quando por exemplo temos diante de nós alguém que acha que o nazismo até foi uma bênção para a humanidade pelo tratamento que deu aos judeus.
Neste caso a suposta ofensa a honra do queixoso por difamação ou injúria deve ser entendida como sendo absolutamente legítima do ponto de vista do exercício de um direito superior àquele que protege a personalidade, que é a liberdade de expressão, sem o qual o debate político contraditório e acalorado inerente a qualquer projecto democrático deixaria de ter qualquer respaldo. Na calúnia e na difamação tem que haver testemunhas da ofensa, isto é, o crime só se consuma mediante conhecimento de terceiros, enquanto que na injuria basta o conhecimento do facto pelo injuriado.
Na difamação que parece ser o crime mais “utilizado”, o nosso código admite a prova sobre a verdade dos factos quando os queixosos são funcionários públicos no exercício das suas funções, entendendo-se esta condição como sendo extensiva aos membros responsáveis de qualquer corporação que exerça autoridade pública. Admite-se ainda esta prova nos crimes de difamação, se o facto imputado for de índole criminosa sobre que houver condenação ainda não cumprida ou acusação pendente em juízo.
De notar que actualmente, quer o Código Penal quer a Lei de imprensa já não contêm qualquer disposição especial de protecção à figura do Chefe de Estado ou seu homólogo estrangeiro, como acontecia no passado, sendo assim permitida a apresentação da prova dos factos imputados em caso de um processo difamação desencadeado pelo Presidente da República.
Restam, no entanto, segundo faz notar uma avaliação da nova lei de imprensa produzida pela Human Rights Watch (HRW), várias provisões do Código Penal que fornecem maior protecção contra a difamação e a injúria às personalidades públicas do que aos cidadãos comuns.
O artigo 114 estabelece que as penas para os crimes de difamação serão aplicadas a qualquer acto que ofenda a consideração devida a uma autoridade pública. O artigo 181 também prevê prisão de um ano para qualquer pessoa que ofenda, através de palavras, ameaças ou actos, várias autoridades públicas, inclusive ministros, conselheiros de estado, membros do parlamento ou comandantes da força pública.
Essas disposições, na opinião do estudo realizado pela HRW, são contrárias ao princípio bem estabelecido em direito internacional segundo o qual a “média” deve ser especialmente protegida pela lei quando cobrindo assuntos de interesse público e segundo o qual políticos e outras figuras públicas devem tolerar maior nível de escrutínio e possíveis críticas.
Tanto a Corte Europeia de Direitos Humanos quanto a Comissão Inter-Americana sobre Direitos Humanos reafirmaram esses princípios em sua jurisprudência, conforme, aliás, já foi aqui referido.
Se nos fosse permitido fazer algumas sugestões à guisa de conclusão sobre esta relação potencialmente conflituosa entre a liberdade de informar e o direito ao bom-nome de quem, eventualmente, achar que foi difamado na imprensa, aconselharíamos o poder judicial a tentar equacionar da melhor forma a importância dos interesses em disputa, partindo do principio que existe uma certa hierarquia entre diferentes direitos e que a existência do “animus difamandi” tanto condena, como a sua ausência absolve.
Ao dizer que um determinado político bebe mais do que a conta das suas responsabilidades sociais permite, a intenção do jornalista, mesmo sem ter comprovado devidamente o facto, poderá ter muito mais a ver com a defesa de um bem público que é a qualidade da própria governação do que com algum ataque mais pessoal e gratuito visando dar cabo da carreira profissional e do prestígio social do visado.
Afinal de contas os políticos, sobretudo quando estão no poder, devem dar o exemplo.
Aos homens da comunicação social aconselharíamos a serem mais profissionais no sentido do respeito pelas normas mais elementares do jornalismo, sobretudo quando estão em causa situações de conflito, evitando a manipulação das fontes e a lei do menor esforço.
Muitas situações embaraçosas que os jornalistas têm enfrentado nos tribunais seriam facilmente evitáveis se, antes de publicarmos uma determinada matéria, tivessem tido o cuidado de procurar falar com todos os protagonistas.
A linguagem defeituosa, onde a adjectivação desnecessária sobressai como a estrela de um espectáculo que acaba por não acrescentar nada à informação que se pretende veicular, é nesta altura um dos pequenos/grandes vícios do nosso jornalismo, responsável por muitos ataques à honra de terceiros.
Resta-nos aconselhar os jornalistas a agirem sempre de boa-fé, como intermediários, operadores ou gestores e nunca como parte activa dos factos, partindo do principio que ninguém é culpado de nenhum crime até o seu processo ter transitado em julgado, um outro direito constitucional, o da presunção da inocência, que tem de facto sido muito mal tratado pela imprensa em todo o lado.
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