segunda-feira, 20 de julho de 2020

Os problemas actuais do jornalismo angolano (Novembro 2001)*


[Falar dos problemas actuais do nosso jornalismo com a abrangência e a profundidade que uma tal incursão requer e aconselha não é, naturalmente, possível no espaço de uma intervenção de cerca de 15 minutos que é o tempo que nos foi concedido para abordarmos este tema, pelos organizadores destas Segundas Jornadas Técnico Científicas da Comunicação Social.Uma iniciativa que desde já queremos saudar pelo seu interesse e importância para o desenvolvimento integral da actividade jornalística entre nós, com a esperança de que este fórum de debate plural se consiga manter como uma referência obrigatória anual no calendário dos profissionais da comunicação social angolana. Vamos então tentar falar rapidamente dos problemas que nos preocupam, que preocupam o nosso jornalismo, com a limitação já referida, a condicionar este levantamento apenas a alguns deles que pensamos serem os mais pertinentes.]

#Tenho para mim que o grande problema que o jornalismo enfrenta em todo o mundo, sem excepção, é a sua afirmação como um poder independente ao serviço da sociedade e do interesse público, que em democracia são as duas principais fontes de legitimação do poder que se renova periodicamente pelo mecanismo sufrágio universal.
Um mecanismo que anda ausente de Angola já faz um bom tempo, após o seu primeiro e trágico ensaio em 1992.
Uma ausência que explica parcialmente todos os problemas de relacionamento e de equilíbrio que hoje se vivem por aqui, onde se incluem os da comunicação social sobretudo na sua coabitação com o poder político. 
Tido para muitos como uma utopia, a afirmação da independência dos jornalistas é, na nossa modesta apreciação, a essência da actividade jornalística de referência, que se deve manter como uma orientação permanente de todos quantos trabalham no sector, não obstante todas as dificuldades e bloqueios conjunturais.
Estamos a falar do jornalismo concebido  naturalmente como um serviço que se presta a toda a sociedade, onde estão incluídos os cidadãos de todas as origens e opções e as instituições políticas, públicas, privadas, económicas religiosas, culturais, desportivas, etc., etc..
Colocada no meio deste fogo cruzado de interesses, a actividade jornalística só tem uma possibilidade de desempenhar a sua missão com a necessária credibilidade se conseguir minimamente salvaguardar a sua independência, numa luta permanente contra todos os assaltos, a começar pelos proprietários dos próprios médias, que são os primeiros a franzirem o sobrolho ou arreganharem a testa quando se lhes fala desta parte da história.
A actual legislação angolana foi feliz em reconhecer, preto no branco, a necessidade desta independência obrigatória para os meios de comunicação social que são propriedade do estado, num país que tem as características do nosso, onde a cobertura mediática a nível nacional continua a ser garantida em mais de 90%  por tais meios.
Em termos de país, a intervenção da comunicação social privada acaba por ser mais ou menos residual, mesmo em Luanda, onde a totalidade dos cinco semanários que se editam na capital, em termos de tiragem, não ultrapassam os 40 mil exemplares.
Reza o artigo 15 da Lei de Imprensa (1991) que quando o Estado ou outra pessoa colectiva de direito público seja proprietário de alguma publicação periódica, o estatuto destas deverá salvaguardar a sua autonomia e independência editorial.
Para além deste artigo, temos ainda na mesma lei, as alíneas c) e d) do seu artigo 3º que são muito mais abrangentes, ao considerarem que em Angola os órgãos de comunicação social têm como fins gerais “informar o público, com a verdade, independência e isenção, sobre os acontecimentos nacionais e internacionais, assegurando o direito dos cidadãos à informação correcta e imparcial”, ao mesmo tempo “que devem assegurar a livre expressão da opinião pública e da sociedade civil”.
O conteúdo destes dois artigos dá assim completa satisfação ao principio da independência da actividade jornalística, o que choca permanentemente com o desempenho dos jornalistas e dos médias no seu dia-a-dia, havendo aqui a registar incidentes preocupantes tanto do lado da média estatal como da imprensa privada.
Colocamos assim a independência e o livre exercício da actividade jornalística como o principal problema que enfrenta actualmente o jornalismo angolano, numa altura em que as tendências mais controlistas do passado parecem querer dar lugar a uma paisagem mais descontraída, com os médias estatais a apresentarem uma imagem mais de acordo com a multifacetada realidade nacional.
Para esta abertura estamos absolutamente convencidos que foi decisivo o surgimento da informação privada entre jornais e rádios, pois até então a opinião pública não tinha qualquer termo de comparação para avaliar o tipo de informação que lhe era disponibilizada pelos [estatais] MDMs (Meios de Difusão Massiva).
O jornalismo é um poder sem ter poder de facto.
É um poder eminentemente social, que não deveria ser apropriado por ninguém em particular, mantendo-se como uma força de charneira e de equilíbrio, aberta a tudo e a todos, sem perder naturalmente de vista a sua principal missão que é a produção de informação verdadeira, isenta e objectiva, tendo em vista a sua divulgação massiva.
Infelizmente nos dias que passam, a comunicação social tem estado a ser assaltada sistematicamente por outros poderes, com destaque para o político e o económico, que vêem nos “médias” uma poderosa alavanca de manipulação, prestígio e promoção, para a prossecução dos seus interesses particulares/estratégicos.
Interesses quantas vezes tão gravemente lesivos do próprio interesse nacional, como o atestam os mais variados e sucessivos escândalos políticos e financeiros, envolvendo gente da mais alta hierarquia ao nível de um sem número de países, onde, felizmente, ainda vai havendo alguma capacidade para pôr ordem no circo das desgraças nacionais/locais.
Definitivamente, o Governo ou o partido que está no poder não pode ser confundido com o todo o nacional, sobretudo em matéria de interesses, nem pode representar o conjunto das aspirações de cada um dos cidadãos.
O Governo é apenas uma parte deste todo com funções estratégicas, que lhe foram atribuídas por todos nós, quer os que votaram a favor, como os que votaram contra o partido que por força dos votos se constituiu em poder.
Uma força que em circunstância alguma pode ser entendida como um cheque em branco.
Os executivos em qualquer parte do mundo democrático não fazem parte da mobília nacional, como soe dizer-se, o que por outras palavras quer dizer que não vieram para ficar.
A mobília são os cidadãos.
Os executivos são eleitos, quando o são, para governar bem, para satisfazerem minimamente o interesse colectivo.
De quatro em quatro anos, eles, ou continuam, ou passam definitivamente à história.
Os jornalistas continuam no seu posto de sempre e quantas vezes não recebem reforços dos “caídos” deste ou daquele governo. 
Alguns destes reforços, curiosamente saídos da própria classe.
Pessoas que à certa altura decidiram mudar de rumo ou fazer carreira, como se o jornalismo não fosse também uma carreira.
Com um mandato vitalício que lhes é conferido pela própria constituição, no domínio das liberdades fundamentais, entre as quais figura a liberdade de imprensa, os jornalistas estão entre a mobília nacional como verdadeiros mirones [watch dogs] da actividade governamental no seu dia-a-dia, espreitando quantas vezes pelos buracos das fechaduras, pois o sistema da porta fechada continua a ser o predilecto da governação em Angola e não só.
Só um jornalismo independente está em condições de jogar um papel positivo na sociedade como uma força de pressão, capaz de ajudar os governos a alterarem, nomeadamente, posturas anti-sociais,  a que, vezes sem conta, são conduzidos por uma estranha lógica de governação, que ignora a dimensão humana do cidadão, transformando-o em mera referência estatística para cálculos de vária ordem, quantas vezes manipulados.
#A falta de rigôr profissional no tratamento das diferentes matérias que fazemos chegar aos nossos consumidores, tendo em conta naturalmente o seu interesse público, é outro dos problemas que vem marcando o jornalismo angolano.
Esta falta de rigôr tem do outro lado a manipulação dos jornalistas por determinadas fontes. Tem ainda o fenómeno da corrupção que entre nós não tem poupado ninguém em termos de generalização.
Estamos a atravessar uma altura, que já se arrasta de há uns anos a esta parte, em que de facto, o rigôr é o grande desafio para se vencer a batalha da qualidade do nosso produto, face a avalanche de críticas que continua a chover, sendo grande parte delas assumida pelos círculos políticos afectos ao governo e ao partido no poder e tendo como destinatários privilegiados os homens da imprensa privada.
É fácil de constatar esta ausência de rigôr, sobretudo quando em causa estão matérias que envolvem interesses contraditórios, ficando mais ou menos claro que o jornalista que pegou no assunto privilegiou o contacto com uma das partes, com a agravante de muitas vezes ignorar quase que ostensivamente o outro lado da barricada, num grave atentado ao principio constitucional da presunção da inocência.
Para se resolverem em parte estes problemas, pois os jornalistas muitas vezes alegam indisponibilidade de uma das partes envolvidas, gostaríamos que a futura lei de imprensa fosse mais taxativa em relação às obrigações das diferentes fontes, sobretudo quando se tratarem de fontes com responsabilidades políticas ou públicas.
A actual lei é muito vaga a este respeito, pois apesar de garantir aos profissionais o acesso às fontes de informação necessárias ao exercício do direito do cidadão à informação e de orientar as entidades oficiais no sentido de facilitarem um tal acesso, acaba por ser omissa em relação às consequências resultantes da ausência desta colaboração.
Os jornalistas são normalmente acusados de sensacionalistas e de outras práticas menos correctas, mas as fontes oficiais, e não só, que se recusam a dar informação acabam por passar em branco quando se faz o julgamento do produto final.
Seja como for, já não se podem tolerar de ânimo leve determinadas “intervenções jornalísticas” onde o mais elementar dos deveres profissionais é pura e simplesmente ignorado.
Está-se muito mal.
Escrever, mesmo sob “encomenda”, uma matéria problemática, onde em causa estão interesses contraditórios, sem ouvir no mínimo as partes em confronto é primeiro passar ao lado de regras sagradas, cuspindo nelas.
Depois vem o resto, caso a coisa dê para o torto, o que é sempre um potencial risco quando em jornalismo não se cruzam as informações e não se contactam todas as fontes possíveis ou pelo menos disponíveis.
Ao admitirmos que é possível escrever sob “encomenda”, não estamos a caucionar nem um tipo de manipulação prévia de quem contacta o jornalista e o “convence” a elaborar determinada história.
Pensamos que qualquer pessoa ou instituição está no direito de contactar determinado jornalista por achar que ele é o profissional mais adequado para dar o melhor tratamento ao assunto que gostaria de se ver estampado para consumo da opinião pública.
Até aqui não vemos qualquer problema que possa ferir a ética e a deontologia profissionais.
Aliás, os próprios gabinetes de imprensa, que hoje pululam por tudo quanto é instituição, são bem o reflexo desta necessidade de “vender” a melhor imagem junto da comunicação social, sem haver necessidade, muitas vezes, de se recorrer à publicidade paga.
Uma entrevista, um artigo ou uma reportagem assinado por um reputado jornalista sobre determinado caso, empresa, instituição, projecto ou iniciativa vale muito mais do que uma página inteira de publicidade do tipo “eu sou o melhor do mundo, depois de mim há pouco mais por aí”.
Lamentavelmente, o que se está a passar com o jornalismo entre nós é, muitas vezes, a aceitação da dita “encomenda” sem condições, o que leva a que o jornalista contactado se transforme num puro instrumento de quem está na “ofensiva” por qualquer motivo.
Assim, deixaremos de ser as correias de transmissão do passado, mas passaremos a ser teleguiados pelo controlo remoto de quem nos observa de longe e muitas vezes se diverte com as nossas desgraças, depois de sermos apanhados pelas armadilhas por eles próprios montadas.

*TEXTO  DA COMUNICAÇÃO APRESENTADA NASSEGUNDAS JORNADAS TÉCNICO-CIENTÍFICAS DA COMUNICAÇÃO SOCIAL
CABINDA- CENTRO DE CONFERÊNCIAS DE SIMULAMBUCO
27 A 30 DE NOVEMBRO 2001