domingo, 26 de julho de 2020

Os novos desafios do Jornalismo Económico em Angola (Agosto 2003)

 Os desafios do jornalismo económico no pós-guerra: Reflexão e Perspectivas- é o abrangente e estimulante tema desta oportuna conferência que a Associação dos Jornalistas Económicos (AJECO) promove nesta altura, um ano e meio depois das armas se terem calado em Angola, com a promessa dos ex-beligerantes, que desta vez o silêncio em causa seria efectiva e definitivamente de ouro.
Felizmente, se ainda é possível utilizar esta expressão no contexto angolano, tendo naturalmente em conta tudo quanto de trágico e de catastrófico aconteceu por estas bandas, a promessa está lentamente a ser a paga com o precioso metal, que uma economia à beira da exaustão tão desesperadamente reclamava.
De facto nunca como em Angola o silêncio das armas brilhou tanto em valor como o ouro. Angola é um exemplo particularmente dramático e bastante expressivo de como várias décadas de devastador conflito interno transformaram num passe de mágica um país potencialmente rico que já exibia os seus pergaminhos a nível internacional, numa nação pobre povoada maioritariamente por pessoas  desesperadas, que hoje vêm a esperança em dias melhores renascer timidamente, com o alcance da paz.
A inclusão de Angola na humilhante lista dos 48 países menos avançados do mundo (PMA) fala bem da espectacular trajectória regressiva de um país que fez questão de investir tudo que tinha nos seus cofres na luta contra o seu próprio futuro, queimando colossais riquezas na compra de todo o tipo de armamento. Uma factura que ainda tem a particularidade de ser pouco transparente em relação ao seu real valor e que vai continuar a ser paga com juros altíssimos, a manter bem presente durante bastante tempo o impacto negativo do flagelo da guerra sobre todos os esforços de relançamento da economia angolana que venham a ser empreendidos, que, aliás, já estão em curso.
Pelo andar da carruagem posta em marcha com o Memorando do Lwena, após os acontecimentos do 22 de Fevereiro de 2002, tudo leva a crer que sim, que finalmente os angolanos voltaram as costas às armas e à violência para resolverem desta vez os seus problemas, com os computadores e com as enxadas, com as fábricas e os tractores.
A inteligência dos seus cérebros e a energia dos seus braços têm agora uma orientação estratégica bem diferente, embora a palavra de ordem seja a de continuar a guerra.
Por razões óbvias só podem estar orientados com determinação para uma nova guerra, que é o combate prioritário à pobreza que já se generalizou por entre pequenas ilhas de alguma ostensiva prosperidade, que alimenta actualmente um determinado debate político muito ao gosto de todos quantos querem ver ardentemente o actual regime fazer uma longa cura de oposição a partir das próximas eleições.
Agravados por uma explosiva crise humanitária legada pela guerra, os problemas que Angola enfrenta são fundamentalmente de ordem sócio-económica, problemas estes que só encontrarão solução a médio prazo, se, de facto, as melhores estratégias de desenvolvimento forem postas em fase de execução, após um debate inclusivo e vinculativo que tarda em ser organizado, tendo naturalmente o executivo no centro desta iniciativa.
Com o barulho da guerra já fazendo parte do entulho, parafraseando o Felipe Mukenga, país mudou, ou melhor está a mudar, numa movimentação que está a obrigar todos os sectores e forças vivas a procederem à necessária reflexão em torno da melhor filosofia a adoptar para fazerem face aos desafios do pós-guerra.
Salvaguardando a sempre recomendável distância crítica com os diferentes protagonistas do quotidiano nacional aos mais variados níveis, como é evidente, o jornalismo angolano de uma forma geral não deverá estar indiferente a esta tão ansiada metamorfose.
E não está mesmo, com todas as hesitações e contradições que podem ser detectadas aqui e acolá, particularmente ao nível do relacionamento que se estabelece com o poder político, que é quanto a nós aquele que melhor
atenção precisa em matéria de acompanhamento jornalístico no sentido mais abrangente e profundo que uma tal cobertura representa.
Uma atenção que tem a ver com a sua grande importância, por ser ele, enquanto Governo, o responsável principal pela gestão dos recursos nacionais. Uma gestão que em função da sua orientação nos pode fazer mais ou menos felizes, mais ou menos ricos, mais ou menos orgulhosos, mais ou menos dignos, mais ou menos angolanos.
Por tudo isto e muito mais, os Governos são necessariamente o alvo principal das atenções jornalísticas em qualquer parte do mundo, embora tais atenções nem sempre representem a mais-valia que está subjacente a intervenção do produto jornalístico, na sua vertente mais crítica.
É bem verdade que entre nós, o Governo sente-se por vezes bastante incomodado pelo tipo de atenções menos simpáticas que lhe são dispensadas pela "média".
Mas também não é menos verdade que temos um mesmo governo que está há mais de 27 anos no poder, o que em circunstâncias normais poderia não ter acontecido.
Em Angola para já nada é normal!
Antes de mais, seria bom que  no mínimo estivéssemos  de acordo em relação à natureza independente do projecto jornalístico, seja ele qual for em matéria de colocação ou tutela institucional.
Independência em jornalismo é equidistância.
Independência em jornalismo é não confundir alhos com bugalhos.
Com todas as limitações que o proprietário, seja ele quem for, estabelece ou inspira, é possível ser-se jornalísticamente independente no tratamento de uma determinada matéria mais conflituosa, como foi por exemplo o caso da recente greve dos professores universitários, onde, lamentavelmente, a "média" estatal perdeu uma grande oportunidade de fazer um trabalho exemplar, numa altura em que já existem todas as condições para tal.
Não me venham dizer o contrário que eu não acredito.
Vou ter de exigir provas.
 
Em torno da independência, o acordo é, contudo, difícil de obter, sobretudo quando passamos da definição do principio para a sua implementação na prática do que deverá ser uma postura jornalística mais adequada, tendo em conta que embora não haja um jornalismo ideal, deve haver um ideal de jornalismo.
É este ideal que nos deve animar todos os dias e em todos os momentos, particularmente, quando temos de tomar decisões editoriais importantes.
Enquanto se aguarda por uma nova definição da correlação das forças partidárias, o que só será possível com a realização das próximas eleições gerais, as atenções estão já a deslocar-se rapidamente para a frente da economia, onde cada vez mais se vai jogar o futuro político do país, com o seu regresso à normalidade democrática.
Um regresso que pressupõe antes de mais a realização periódica de eleições, que é o principio estruturante mais importante de qualquer sistema democrático, que se preze, pelo menos de acordo com o chamado modelo ocidental.
Um principio que anda ausente faz tempo de Angola, depois das primeiras eleições realizadas em 1992, que, lamentavelmente, não marcaram a viragem histórica que anunciavam há mais de 12 anos, quando pela primeira vez se tentou enterrar o machado de guerra por estas paragens africanas.
Como acontece noutros países, também em Angola os eleitores vão passar a julgar o desempenho do executivo, antes de mais pelos seus resultados na esfera das finanças e da economia, da educação e da saúde, do emprego e da segurança social, da habitação e da protecção ao meio ambiente.
Atento a esta realidade, vai ter de estar certamente o jornalismo, numa altura em que grande parte das suas atenções se esgotam na divulgação do discurso oficial, na maior parte das vezes sem qualquer preocupação em procurar saber, por exemplo, o que representam em termos sociais determinadas opções  financeiras ou económicas.
O pouco jornalismo económico que se vai fazendo em Angola vai necessariamente, com os olhos postos na sua expansão e credibilização, de ter em devida conta e desde já, a situação do pós-guerra, começando por uma definição que seja mais ou menos consensual do seu papel específico, no contexto do jornalismo especializado.
Aqui e tendo em conta o que atrás já foi referido no que toca a importância do principio estruturante que é a independência editorial, não temos qualquer dúvida em salientar que só com esta perspectiva de intervenção o jornalismo económico estará em condições de prestar um bom serviço a toda a sociedade. 
Transformar-se numa caixa de ressonância, seja de quem for, não será, certamente, a melhor opção para os jornalistas ajudarem o país a solucionar os seus graves problemas económicos.
O governo é a peça mais importante na manobra económica do país, mas está longe de poder monopolizar o conhecimento nesta área, onde no caso concreto de Angola se tem vindo a verificar uma excessiva auto-suficiência da parte do executivo, com resultados muito pouco animadores para o conjunto da economia, como facilmente se constata.
Num país engolido diariamente pela inflação, onde o Governo ainda não está a altura, ou não é capaz de garantir o mínimo de estabilidade macro-económica, para o saudável desenvolvimento da actividade empresarial e não só, parece-nos óbvio que o jornalismo económico oriente prioritariamente o debate para a abordagem de um tal desiderato que acaba por ser a principal responsabilidade de qualquer executivo.
Está mais do que provado que enquanto a inflação em Angola não estiver devidamente controlada na faixa de apenas um dígito, todas as previsões e exercícios orçamentais terão o valor que têm até ao momento.
Muito pouco ou quase nada, com todo o impacto desestabilizador que se adivinha para o conjunto da economia, sendo o mais visível a permanente redução do poder de compra dos assalariados, com as consequências que se conhecem particularmente ao nível do movimento laboral, com o recurso à greve a generalizar-se.
Só com uma perspectiva crítica devidamente fundamentada, o jornalismo económico poderá funcionar como um parceiro do próprio governo, ajudando-o a ver melhor o caminho que está a trilhar.
Em situações de profunda crise socio-económica e de grande sofrimento das populações, como é aquela que se vive em Angola, o jornalismo económico tem de procurar fazer chegar ao governo as preocupações dos flagelados e dos excluídos por estratégias que já se revelaram incapazes de produzir outros resultados que não sejam mais e mais dificuldades, sem qualquer sentido, algumas vezes.
Tendo em conta a complexidade das matérias a abordar, os seus profissionais antes de mais vão ter de se preparar para trocar por miúdos, isto é, tornar acessível ao grande público, toda a informação e análise económica disponíveis.
Do ponto vista mais técnico este é um desafio que se coloca em todos os países aos profissionais que lidam especialmente com matérias económicas.
Com a morte de Jonas Savimbi, alguns observadores mais contundentes acham que o Governo deixou de ter à sua disposição o principal argumento com que justificava a parte mais obscura do seu desempenho institucional, particularmente ao nível da gestão dos rendimentos petrolíferos.
Por outras palavras, a retirada da guerra do cenário nacional está já a mexer com tudo e todos.
O Governo angolano está a partir de agora submetido a uma mais intensa vigilância dos seus já conhecidos inimigos, adversários e críticos, com os olhos postos no fenómeno da corrupção e da falta de transparência, duas referências permanentes que têm acompanhado a actuação do Executivo.
Duas referências contra as quais o Governo vai ter lutar de agora em diante com mais determinação se quiser realmente projectar interna e externamente uma imagem diferente daquela que justa ou injustamente se colou às suas vestes, quais duas lapas teimosas.
Ignorar esta realidade ou atribuí-la apenas a conspirações e cabalas alimentadas do exterior é que não parece ser muito aconselhável.
Neste fogo cruzado de acusações e contra-acusações, o jornalismo económico em defesa dos interesses nacionais, vai ter de saber posicionar-se correctamente, evitando participar em campanhas políticas, mas com a certeza antecipada de que este tipo de informação vai manter-se e mesmo crescer.
Passar pura e simplesmente ao seu lado, com receio de chocar com o poder político ou ser carimbado por ele com algum adjectivo bem conhecido é que também não nos levará a lado nenhum, num mundo cada vez mais globalizado, onde as fronteiras nacionais já não são suficientes para travar os fluxos informativos que nos chegam diariamente às catadupas, bastando para o efeito ter apenas um computador e uma simples linha telefónica.
Melhor do que ninguém, o jornalismo económico é chamado nos dias que passam a informar o país sobre si próprio e sobre o seu lugar no mundo, evitando que Angola caminhe sem inquietações para situações mais complicadas.
O fim da guerra com tudo o que de potencialmente positivo trouxe para a solução dos problemas nacionais, está longe de ser a varinha mágica com que todos sonhamos.
Muita pedra por partir ainda temos pela frente.
Tendo em conta a sua própria essência, o jornalismo económico está agora na linha da frente, pois estamos perfeitamente de acordo com quem afirmou que, “não há democracia sem informação rigorosa e sem debate leal, incompatíveis com o espectáculo-rei que desnatura a informação e dissolve o Estado, a nação e a própria sociedade, tornada ignorante das solidariedades elementares, dos interesses mais essenciais, das aspirações mais legítimas”.(1)

Inspirados por Claude Julien diremos que jornalismo económico está aí para dizer aos cidadãos que o seu futuro é jogado diariamente longe de determinadas ribaltas para onde muitas vezes a atenção dos espectadores é atirada, com o claro propósito de fazer deles apenas isso mesmo: meros espectadores de um espectáculo que em abono da verdade está a ser feito noutro local, onde no segredo dos deuses se discute e se decide o sistema financeiro, os mecanismos de mercado, as concepções estratégicas e por aí além.

8/Agosto/ 2003