As referências ao princípio da imparcialidade como uma exigência que a própria lei impõe à comunicação social/jornalistas no exercício da sua missão, começamos por encontrar na Lei Constitucional, mais exactamente no ponto 4 do seu artigo 17º, onde se refere, nomeadamente, que os partidos políticos “têm direito um tratamento imparcial da imprensa pública”.
Depois ao longo da legislação ordinária, mais especificamente aquela que tem a ver com o chamado pacote legislativo da comunicação social, vamos encontrar mais algumas referências à imparcialidade associada a um outro princípio que é o da isenção ou mesmo substituído por este último, que é aquele que mais aparece de forma expressa no articulado dos diferentes diplomas concernentes ao nosso “métier”.
Aparentemente o legislador não teve qualquer preocupação em definir os limites dos dois princípios, como o fez para outros conceitos, de acordo com a lista que consta do artigo 2º da Lei de Imprensa (1/17 de 23 de Janeiro).
Tendo em conta a sua proximidade conceptual, acreditamos nós que eles surgem na legislação quase como sinónimos, embora efectivamente possam ser diferenciados por outras abordagens mais académicas, que o tempo concedido para esta exposição não permite aqui esmiuçar.
Importa desde logo salientar que o “interesse público”, que é o conceito guarda-chuvas norteador de toda a intervenção do jornalismo de referência em Angola, concretiza-se, nomeadamente, através da informação do “público com verdade, independência, objectividade, isenção e imparcialidade, sobre todos os acontecimentos nacionais e internacionais, assegurando o direito dos cidadãos à informação correcta, imparcial e isenta”.
Só nesta alínea b) do artigo 11º da Lei de Imprensa, temos duas vezes a palavra imparcialidade.
Na mesma lei temos novamente este princípio como um dever dos jornalistas, que para o efeito são obrigados a confrontar as suas fontes “para assegurar uma informação correcta e imparcial”.
Já na lei sobre o seu Estatuto, os Jornalistas têm como um dos seus deveres o exercício da sua “actividade com respeito pela ética profissional, informando com rigor, objectividade, isenção e respeito pelo princípio do contraditório”.
Para simplificarmos um bocado tudo isto e com os olhos mais direccionados para o jornalismo político numa sociedade pluralista que é o foco desta nossa incursão, tendo em conta a composição desta plateia, diríamos que imparcialidade ao lado da neutralidade e da isenção formam assim uma espécie de triângulo algo redundante que visa dar satisfação a um tipo de expectativa social que tem por base uma sociedade politicamente plural com todas as contradições/divergências que a densificam, longe dos unanimismos do nosso passado recente.
Para sermos melhor aceites, iremos socorrer-nos aqui de uma tese académica que já tem alguns bons anos onde o seu autor, o professor brasileiro Josenildo Luiz Guerra sustenta que “na esfera do trabalho jornalístico, que lida frequentemente com conflitos, a neutralidade constitui-se numa pré-condição e a imparcialidade num meio pelo qual essas polémicas podem vir a público, de modo que as partes do conflito possam sentir-se contempladas pelo tratamento que receberam.”
De facto quando falamos da necessidade da imparcialidade na comunicação social em Angola o maior desafio na balança do direito constitucional que se chama igualdade que é aquele que mais gostamos, sem ignorar nenhum dos outros, continua a ser o tratamento a dar ao governo, aos partidos políticos e a todos quantos de uma forma geral são protagonistas ou querem ser da vida política de um país, com toda liberdade que têm de o ser.
Com as autarquias à vista, esta complexidade de entidades e actores vai, certamente, crescer e aumentar a pressão sobre a comunicação social e as pautas jornalísticas, na hora de se ter em conta o principio da imparcialidade, sobre o qual todos temos uma ideia mais ou menos convergente ao nível do senso comum que é aquele que parece ser o mais acertado.
A imparcialidade, a neutralidade e a isenção e se quisermos acrescentar a boa-fé/honestidade e o distanciamento crítico fecham um espaço geométrico multilateral onde poderiam caber todas as chamadas boas práticas que visam conferir ao jornalismo rigor e consequentemente a necessária credibilidade para se manter como o melhor fórum público de intermediação que todos os protagonistas activos da vida política procuram e onde todos se reconhecem.
Como é evidente a comunicação social não faz favor nenhum a ninguém em tornar este acolhimento o mais abrangente, hospitaleiro e consistente possível, sendo exactamente esta, possivelmente, a sua mais nobre missão que é o esclarecimento da opinião pública sobre o discurso dos políticos, estejam eles onde estiverem, entre a situação e a oposição, para não nos estendermos mais na identificação dos nossos actores.
Na verdade numa sociedade que tem na democracia representativa a sua base, a política dos partidos é de facto o ponto de partida para tudo o resto.
Hoje já não é mais possível fazer política sem a presença dos médias e dos jornalistas e sobretudo sem a televisão que, como meio de comunicação social, reúne os recursos da escrita e som, com toda a força que a imagem possui. É uma espécie de 3 em 1.
Tão certo é isso que em Angola, o Estado também assumiu expressamente o compromisso constitucional de assegurar a existência e o funcionamento independente e qualitativamente competitivo de um serviço público de rádio e de televisão.
Do ponto de vista democrático, não faria qualquer sentido se todo este investimento público estivesse apenas ao serviço do partido no poder e do governo dele resultante.
Na realidade e até agora, nós temos tido uma média estatal que depois ter sido completamente controlada por um só partido nos tempos do monopartidarismo, passou a ser governamentalizada quanto baste, estando agora a caminho do seu estatuto de serviço público, num percurso interminável com todos os avanços e recuos que se conhecem e nos continuam a dividir nesta avaliação sobre o desempenho da média pública que temos ou que ainda não temos, mas que acreditamos vamos ter qualquer dia.
Embora ainda nem todos acreditem que será possível um dia destes o actual xadrez politico-partidário sofrer uma alteração mais substancial, todos sabemos que a alternância é intrínseca do sistema que está em vigor e que todos os cinco anos é sujeito à renovação pela via das eleições.
Em Angola e com o agravamento da crise sócio-económica que estamos a viver e que já se arrasta desde 2014, somos da opinião que qualquer dia só vai mesmo sobrar a TPA/RNA não por qualquer mérito próprio, mas apenas porque ainda há um “santo” que se chama OGE que é de todos e sobre a gestão do qual todos sempre temos alguma legitimidade de nos pronunciar.
O espaço multilateral atrás referido, onde se destaca a imparcialidade, que é o tema desta dissertação, não tem tido com a realidade política angolana o melhor e mais pacífico relacionamento, agravando-se o mesmo durante as campanhas eleitorais, a ter em conta quer os resultados da nossa observação quer as queixas dos protagonistas ao logo das últimos três disputas eleitorais que já tiveram lugar no país após o alcance da paz definitiva em Abril de 2002.
A imparcialidade que mais se reclama da comunicação social em tempos de eleições é aquela que consta do artigo 65º da Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais e que obriga os órgãos públicos e privados e seus agentes a agir com rigor, profissionalismo e isenção em relação aos actos das campanhas eleitorais.
Para além da igualde de tratamento, a nossa lei eleitoral vai ao ponto de proibir a qualquer órgão de comunicação social posicionar-se a favor de qualquer partido político, coligação de partidos ou candidatos concorrentes, nas matérias que publicar.
É importante destacar aqui esta exigência da legislação angolana por ser extensiva a todos os órgãos, independentemente de serem públicos ou privados, o que por outras palavras significa dizer que durante a campanha eleitoral até os textos de opinião estão ou deviam estar sujeitos à regulação de uma Entidade sobre a qual falaremos seguidamente com tons muito pouco animadores.
Aqui chegados, fazendo esta ou aquela interpretação sobre o que deve ser o conceito e a prática da imparcialidade e seus anexos por parte da comunicação social na cobertura da actividade politica mas não só, a questão que temos de colocar está relacionada com as garantias.
É uma questão nevrálgica e que de uma forma geral é vista por alguns analistas como sendo o maior “calcanhar de Aquiles” do nosso Estado Democrático de Direito.
De facto e tendo em conta os avanços e recuos já referidos no caminho que a comunicação social tem vindo a fazer em direcção à um desempenho mais consensual, o desafio aqui é mesmo tentar agradar a gregos e troianos.
Temos a certeza de que é possível, se houver vontade, ir sempre um pouco mais longe nesta aproximação, que tarda em atingir a sua velocidade de cruzeiro e cujo teste maior tem sido até agora o período eleitoral, com as decepcionantes notas que se conhecem na disciplina da imparcialidade, mas não só.
No país real esta vontade, a tal vontade política de que muito se fala, ainda só acontece quando os interesses funcionam a contento de quem efectivamente continua a dar as cartas de um jogo que pode estar a mudar desde 2017, embora o baralho da maioria qualificada continue a ser exactamente o mesmo.
É, contudo, ainda muito cedo para perceber para onde nos estamos a movimentar se a ideia é mesmo estabelecer um novo paradigma para além da retórica.
Neste momento e a funcionar, a única entidade independente que tem esta capacidade de garantir que a imparcialidade da comunicação social ao lado de outros valores estruturantes da própria liberdade de imprensa seja observada por todos os protagonistas do sector chama-se ERCA.
É nesta instituição que eu me queria concentrar para concluir os apertados 15 minutos que me estão reservados, numa altura em se fala novamente de uma revisão do pacote legislativo da comunicação social.
De facto o espirito que animou a elaboração do actual, ainda pertence ao passado, um passado recente do qual não temos muitas saudades, que está a ser enterrado, mas ainda sem garantias de que no lugar dele venha a nascer um presente mais republicano para todas as nossas instituições.
Este presente republicano, citando Barack Obama, já não deverá ser mais o dos líderes fortes, que já tivemos de sobra com os resultados que se conhecem.
O que Angola precisa efectivamente é de instituições fortes que nos deiam as necessárias garantias que a lei esteja de acordo com o espirito e a letra dos direitos e das liberdades fundamentais.
Mas mais do que isso, que esta lei não se transforme em letra morta e que seja implementada efectivamente.
O problema desta ERCA que ainda pertence ao passado que se prolongou até Outubro de 2017 é que ela foi desenhada pelo legislador como um jarro de bonitas flores na tradição do seu antecessor, o CNCS, apenas para enfeitar o jardim das garantias dos direitos e liberdades fundamentais que tem no Estado o seu maior interessado, mas que na prática tem sido também o seu principal adversário.
O que está em causa é o próprio modelo de regulação da comunicação social que efectivamente tem de ser revisto na sua essência, pois nesta altura todos os poderes efectivos e executivos continuam nas mãos do TPE/Governo através do seu Ministério da Comunicação Social que agora se transformou no Ministério das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social (MINTTICS) passando um só Ministro a controlar também a gestão mais técnica de todo o processo de licenciamento.
O que mais auguramos na perspectiva do próximo debate parlamentar que se avizinha, caso efectivamente o pacote legislativo da comunicação social venha a ser revisto por esta câmara nesta legislatura, é que no mínimo se adopte um modelo de competências e responsabilidades partilhadas entre o Executivo e a ERCA, sobretudo no que toca à regulação do sector público da comunicação social.
Não faz qualquer sentido até pelo investimento público feito pelo Estado na criação e manutenção de uma Entidade reguladora com as características da ERCA, que ela não seja tida nem achada em matérias como o licenciamento de televisões e rádios ou mesmo na nomeação das administrações dos órgãos públicos.
À ERCA não é pedido nenhum parecer que seja minimamente vinculativo para nenhuma decisão que o Governo tome no sector da comunicação social o que é verdadeiramente extraordinário num país que há mais de 25 anos decidiu apostar neste tipo de regulação, como resultado do próprio processo de abertura ao multipartidarismo com a realização em 92 das primeiras eleições em Angola.
A terminar e com toda a imparcialidade que tentei emprestar a esta modesta comunicação na abordagem do tema que me foi solicitado, resta-me desejar que os nossos parlamentares olhem para esta problemática com os olhos no futuro de um país, que será certamente melhor se tivermos a contribuição de uma comunicação social e de um jornalismo que possa exercer a sua magistratura de forma cada vez mais independente e profissional.
Todos nós já percebemos que este tipo de jornalismo é de facto o melhor aliado da boa governação que também passa e muito pela função fiscalizadora desta Assembleia Nacional.
*Comunicação apresentada na Assembleia Nacional durante uma sessão de formação dos deputados promovida pela Sétima Comissão/22-06-2020