terça-feira, 21 de julho de 2020

“A Imprensa Pública Versus Privada: Responsabilidade perante os protagonistas Eleitorais” (Maio 2008)*



[É claramente pela negativa que deveria responder directamente à questão que emerge da equação “A Imprensa Pública Versus Privada: Responsabilidade perante os protagonistas Eleitorais”.  
É o tema que me foi proposto para abordar nesta Conferência sobre Ética, Imprensa e Eleições organizada pelo Instituto de Desenvolvimento e Democracia (IDD), a quem desde já quero agradecer o convite e elogiar a oportunidade da iniciativa orientada para o debate de uma problemática que corre o risco de se transformar em mais um intenso factor de conflito pré-eleitoral, que parece que é o que já está a acontecer.]
Seria pela negativa porque de jure, considerando antes de mais que estamos num Estado de Direito, não há rigorosamente nada no nosso ordenamento jurídico que estabeleça qualquer diferença substantiva em matéria de direitos, deveres e responsabilidades entre a imprensa pública e a privada.
Muito menos existe esta diferença no que diz respeito ao tratamento pela imprensa dos diferentes agentes eleitorais, com destaque para os partidos políticos, que são aqueles que mais nos interessam nesta abordagem.
Por outras palavras diríamos que estamos diante de uma falsa questão, se a realidade dos factos não nos desmentisse e aconselhasse a olhar para o nosso país com outras cautelas, porque efectivamente Angola ainda não é o país onde o de jure coincide com o de facto.
A nova lei de imprensa aprovada exactamente há dois anos (2006) em nenhum momento do seu articulado considera a existência de uma imprensa pública e de uma outra privada.
A lei apenas refere que todas as empresas e órgãos de comunicação social (sem qualquer excepção) têm a responsabilidade social de assegurar o direito dos cidadãos de informar, se informar e ser informado, nos termos do interesse público.
No âmbito da concretização deste interesse público a lei diz que a informação jornalística tem a obrigação, nomeadamente, “de contribuir para a consolidação da Nação Angolana, reforçar a unidade e identidade nacionais e preservar a integridade territorial; informar o público com verdade, independência, objectividade e isenção, sobre todos os acontecimentos nacionais e internacionais, assegurando o direito dos cidadãos à informação correcta e imparcial; assegurar a livre expressão da opinião pública e da sociedade civil; promover a boa governação e a administração correcta da coisa pública e contribuir para a elevação do nível sócio-económico e da consciência jurídica da população.”
Apesar de não definir de forma explícita a existência de dois tipos de imprensa, com responsabilidades distintas, a lei reserva para um futuro imediato que, lamentavelmente, já pertence ao passado, o surgimento de um serviço público de informação próprio a ser assegurado pelo Estado com base num diploma específico a regulamentar a matéria.
Este diploma regulador tarda em ser aprovado tal como muitos outros previstos na actual lei de imprensa, que são cerca de duas dezenas, ultrapassados que já foram todos os prazos para o efeito.
Levantam-se neste quadro outras questões de índole mais política, pelo menos até as próximas eleições, relacionadas com a real vontade do Executivo em dar outra consistência mais consistente, passe o pleonasmo que é propositado, à liberdade de imprensa em Angola.
Consistência na vertente da liberalização e do pluralismo mediático, mas também do compromisso do Estado em garantir a própria liberdade de imprensa, considerando a sua grande responsabilidade neste âmbito já que é o principal operador do sector onde apenas circula um oficioso e solitário jornal diário, emite uma rádio nacional, transmite uma única televisão pública e se movimenta uma agência noticiosa.
Este compromisso embora já esteja plasmado na lei, de acordo com o que acabamos de ver no caso do conteúdo que a mesma confere ao conceito de interesse público, seria, sem dúvidas melhor defendido com a adopção do previsto diploma que viria consagrar a existência de um serviço público de informação.
Seria em sede deste regulamento que deveria ser submetido à consulta pública, que o Estado, através do Governo, deveria assumir um conjunto de comprometimentos mais específicos no quadro da gestão da comunicação social.
Quanto à mim, o mais importante deles tem a ver com a necessidade de se estabelecerem mecanismos de gestão e acompanhamento editorial que garantam efectivamente a qualidade de um produto jornalístico democrático de acordo com as expectativas de toda a sociedade.
Estes mecanismos passariam pela definição de um modelo plural de administração com base em mandatos definidos e com uma componente que ultrapassasse as simples preocupações de gestão empresarial corrente.
Já há várias experiências, por este mudo afora, deste tipo de modelo de gestão da comunicação social pública, normalmente assente em Conselhos de Administração abrangentes do ponto de vista da realidade política e social de cada país.
Para além da lei de imprensa, podemos encontrar na lei que regula o exercício da actividade de radiodifusão (Lei 9/92) uma referência mais específica à existência de um serviço público de radiodifusão prestado pela Rádio Nacional de Angola.
A citada lei diz que compete ao serviço público de radiodifusão contribuir para a promoção do progresso social e cultural de consciencialização política, cívica e social dos angolanos e do reforço da unidade e da identidade nacional.
Para a prossecução deste objectivo geral, a lei recomenda que a RNA contribua para o esclarecimento, a formação e participação cívica e política da população através de programas onde o comentário, a crítica e o debate estimulem o confronto de ideias e contribuam para a formação de opiniões conscientes e esclarecidas.
Deixando de lado a lei de imprensa e da radiodifusão e passando para a legislação mais eleitoral verificamos que também não há uma diferença na distribuição de responsabilidades por entre a imprensa pública e privada no tratamento dos agentes eleitorais.
Desde logo convém citar o Código de Conduta Eleitoral que atribui aos órgãos de comunicação social o mesmo estatuto de agente eleitoral que é conferido a todos quantos, directa ou indirectamente, vão participar no processo desde os partidos políticos até ao cidadão eleitor, passando pelos observadores, as forças da ordem pública, as entidades religiosas, as autoridades tradicionais, etc., etc..
A todos estes agentes, o Código de Conduta Eleitoral exige a observância de princípios como o respeito pela diferença, liberdade de escolha, direito de reunião e manifestação, legalidade, tranquilidade, imparcialidade, transparência, isenção, civismo e responsabilidade.
Especificamente no que toca aos órgãos de comunicação social, tendo em conta as exigências do Código, fazemos nossas as preocupações manifestadas recentemente pelo Conselho Nacional de Comunicação Social (CNCS) ao alertar as direcções editoriais e os jornalistas para a necessidade de não se permitir que os espaços mediáticos sejam veículos de propaganda indecorosa e de linguagem menos adequada que possam conduzir ou incitar os cidadãos a cometerem actos de violência ou de intimidação.
De acordo com as mesmas exigências, na cobertura do processo eleitoral para além da igualdade de oportunidades que devem dispensar a todos os concorrentes, os órgãos da comunicação social deverão actuar com rigor e profissionalismo, abstendo-se de publicar resultados provisórios não oficiais.
Para além destes deveres, os órgãos de comunicação social têm direito de acesso às fontes de dados eleitorais, à protecção pelas forças da ordem pública e de serem respeitados pelos candidatos, partidos políticos e demais agentes eleitorais.
Por seu lado a Lei Eleitoral e já no âmbito da Campanha Eleitoral, que é um período específico de 30 dias que precede o dia da votação, recomenda que os órgãos de comunicação social públicos e privados e seus agentes devem agir com rigor e profissionalismo em relação aos actos das campanhas eleitorais.
A este respeito a lei acrescenta que, com a excepção dos órgãos partidários, as publicações periódicas, informativas, públicas e privadas devem assegurar a igualdade de tratamento aos diversos concorrentes.
Até aqui e com base neste levantamento do nosso “universo de jure” fica claro que são idênticas as responsabilidades da comunicação social pública e privada em relação aos protagonistas eleitorais.
É nosso entendimento que com base nestes pressupostos legais não é permitida à imprensa pública e privada tomar partido por nenhum dos concorrentes ou candidatos, com a excepção já mencionada.
Será discutível aqui esta interpretação se a matéria em apreciação forem os chamados artigos de opinião devidamente assinados pelo seu autor, pois a Lei de Imprensa exime as direcções dos órgãos de qualquer responsabilidade em relação ao seu conteúdo.
Não nos parece que nesta categoria possam ser incluídos os editoriais, que são sempre o espelho directo do pensamento da direcção do órgão que os publica.
Escrevemos muito recentemente que as eleições em todo o mundo são palco para muita coisa, para muitas jogadas. Menos limpas ou mais sujas. Veja-se o duelo Clinton/Obama no território do campeão da democracia.
Angola não será, certamente, a excepção.
Não o foi em 1992, não o será agora.
O que se recomenda para o “paciente angolano” é que, tendo em conta o seu estado de recuperação, se observem algumas cautelas na administração das inevitáveis doses de propaganda e desinformação e não se ultrapassem alguns limites mais críticos que podem pôr em causa a própria coesão nacional.
Toda a liberdade de imprensa de que já desfrutamos não nos pode fazer esquecer que as eleições são antes de mais um período para os partidos e os candidatos discutirem e apresentarem as suas propostas de como fazer um país melhor.
Este é o grande objectivo de qualquer processo eleitoral que os jornalistas não devem nem podem ignorar, até porque os eleitores querem de facto saber como os problemas existentes vão ser resolvidos para votarem na proposta que acharem mais exequível.
Temos vindo a advogar uma campanha pela positiva, com a discussão de projectos e de soluções para os graves problemas sociais e estruturais que o país enfrenta.
Uma campanha que sem esquecer o passado não faça dele a pedra de toque.
No seu mais recente diagnóstico sobre a situação nacional o Observatório Político e Social de Angola (OPSA) considera que o debate político através de debates e de mesas redondas nosmedia” públicos e privados tem seguido um padrão de qualidade bastante irregular observando-se momentos de real abertura e excelência alternados com momentos de manipulação e exclusão.
Estamos perfeitamente de acordo com este Observatório sobre a necessidade de se emprestar uma maior regularidade a este tipo de debate, considerando a sua importância para contribuir para uma cultura democrática e para aumentar a consciência pública sobre os vários dilemas que se colocam à nossa sociedade.  
Longe de esgotarmos o assunto, terminaremos a nossa contribuição para este debate salientando que o jornalismo só tem um manual que já é universal com todas as resistências e constrangimentos que se conhecem e que se observam facilmente em Angola no desempenho quer dos meios públicos, quer dos meios privados.
Considero que apesar da existência de diferenças no tratamento que uns e outros conferem aos protagonistas eleitorais e que já são visíveis na gestão dos espaços da mídia estatal, não nos podemos esquecer que para tal também muito tem contribuído a inércia e o clima de conflito interno que caracteriza a vida de alguns dos principais partidos da oposição.

*Texto da palestra apresentada em Maio de 2008 na Conferência sobre Ética, Imprensa e Eleições organizada pelo Instituto de Desenvolvimento e Democracia (IDD), uma organização afecta ao partido UNITA.