Se quisermos esta originalidade reside em grande medida no
funcionamento da componente política de um mercado, onde o Estado continua a
ser demasiado omnipresente a influenciar e a querer controlar tudo e todos,
embora os mecanismos já sejam substancialmente diferentes daqueles que eram
utilizados no passado.
Estamos a falar de um Estado que já foi totalitário quando
era partido-estado, que já foi providência quando optou pelo socialismo
científico e que agora quer ser algo diferente que poucos ainda perceberam o
que realmente será, até porque a democratização do país está suspensa, como
resultado da não realização periódica de eleições livres que é o fundamento de
qualquer democracia. Que Estado teremos no futuro é algo que quanto nós está
nas mãos de todos os angolanos, enquanto cidadãos-eleitores, enquanto
cidadãos-contribuintes.
Enquanto isto não acontece não há outra alternativa senão
dialogar e coabitar com o actual estado de coisas que se tem mostrado
particularmente adverso para quem abraçou a causa do jornalismo na sua vertente
mais empresarial. Para quem anda por estas bandas o verbo que mais se conjuga
no dia a dia chama-se sobreviver. Sobreviver no limite. Sobreviver com a corda
ao pescoço. Sobreviver tendo na angustia e na incerteza os seus mais fiéis
companheiros. Uma sobrevivência com claro sabor à resistência.
As dificuldades que a imprensa enfrenta são facilmente
visíveis no actual panorama mediático, onde apenas circula um jornal diário,
sendo este largamente dependente das verbas do OGE, o que lhe retira qualquer
mérito enquanto projecto empresarial. Em abono da verdade diríamos que estamos
mais diante de um departamento estatal, realidade que é plenamente confirmada
pelo próprio Director do JA, quando se refere ao Ministro da Comunicação Social
como sendo seu superior hierárquico. Ele esquece-se, provavelmente, que a
imprensa em Angola por lei já é totalmente livre de tutelas governamentais e
partidárias.
No caso do Jornal de Angola trata-se de um meio que embora
seja propriedade estatal ou pública em termos editoriais está obrigado a
observar a maior independência, de acordo, aliás, com o que prescreve o artigo
15 da Lei de Imprensa.
“ Quando o Estado ou outra pessoa colectiva de direito
público seja proprietário de alguma publicação periódica, estatuto destas
deverá salvaguardar a sua autonomia e independência editorial”- assim reza
ipsis verbis o artigo 15 da Lei de Imprensa. Uma lei que depois é completamente
omissa em relação as disposições que deveriam garantir esta autonomia e
independência. Uma omissão que tem alguma razão de ser, num país onde as leis
dificilmente são aplicadas no seu todo, por falta de regulamentação, que acaba
por conferir ao executivo um poder igualmente legislativo.
Para quem nos visita pela primeira vez com a informação de
que Angola é um país potencialmente rico, exportador de petróleo e diamantes,
muito dificilmente compreenderá como é que o mercado local não foi capaz até
hoje de produzir pelo menos mais um jornal diário. Isto depois de ser sido
extinto por razões políticas em 1976 o vespertino Diário de Luanda que permitia
um mínimo de concorrência com o matutino Jornal de Angola que se mantém assim,
25 anos depois, como o único cartão de visitas que a imprensa diária local tem
para exibir ao país e ao mundo.
Deixem-nos morrer à fome
É em condições particularmente asfixiantes que ao longo dos últimos 6 anos se têm vindo a movimentar as empresas jornalísticas responsáveis pela edição dos cinco semanários que circulam na capital com algumas tímidas incursões pelas restantes províncias em termos de distribuição. Semanários estes que hoje, quer se goste deles quer não, são quanto a nós os responsáveis por uma parte importante da consolidação do processo democrático, que entre nós tem passado muito pela comunicação social.
A média privada é efectivamente a grande alternativa que a
sociedade angolana tem ao seu dispor para fazer valer o seu direito à estar
informada num ambiente pluralista.
Com todos os reparos e críticas que pontualmente se possam
fazer ao desempenho da média privada e
dos seus jornalistas num país marcado por todo o tipo de excessos e violações
que atingem sobretudo os direitos fundamentais dos cidadãos - não temos
qualquer dúvida em afirmar que ela é, nesta altura, uma das principais
garantias do processo de democratização com todos os altos e baixos que se
conhecem da transição angolana que já leva mais de 10 anos.
Já imaginaram como estaríamos hoje em matéria de liberdades
se os jornalistas que ousaram desafiar algumas leis da gravidade política
angolana, tocando para frente os seus projectos, não o tivessem feito?
É fácil de imaginar o
que seria Angola no ano 2001 apenas com um jornal diário, com as características
do nosso matutino. Extremamente fácil.
Mal ou bem as empresas jornalísticas que então fizeram a sua
entrada no mercado da imprensa não diária têm estado a sobreviver, sem qualquer
tipo de subvenção estatal, sem qualquer tipo de investimento dos nossos
capitalistas, num desafio permanente com a inflação galopante e com umas
migalhas de publicidade que vão angariando aqui e acolá, que não permitem fazer
grandes planos. O que é facto é que estas empresas estão aí, depois de duas
delas já terem aberto falência, que são os casos das editoras do Correio da
Semana e do Comércio Actualidade. Paz às suas almas! Curiosamente duas empresas
que tinham com o actual poder político uma relação de familiaridade muito
forte.
Não tem de facto grande relevância ao nível da imprensa
local, um aspecto que é da maior importância noutros países para se compreender
melhor o desempenho da média, saber qual é o tipo de propriedade dominante,
como tem mudado o tipo de posse ao longo
dos anos ou se os trabalhadores são ou não accionistas das empresas
jornalísticas.
Para já podemos mesmo dizer que os projectos editoriais que
têm conseguido sobreviver não enfrentam qualquer problema em termos de
dependência na sua relação com os proprietários, pela simples razão de que as
empresas em causa são propriedade exclusiva dos próprios jornalistas.
Em termos de afirmação como uma área de negócios a imprensa
angolana ainda é demasiado embrionária e pelos vistos vai manter-se nessa
situação ainda por bastante tempo.
Citaríamos aqui o caso singular do semanário Angolense
onde foi ensaiada a única experiência de
intervenção de um grupo empresarial na imprensa privada cujo desfecho não foi
certamente o mais auspicioso para o futuro do projecto, numa altura em que o
divórcio aguarda julgamento em tribunal.
O conhecido político angolano Holden Roberto, da FNLA, numa
das apreciações que fez da situação da imprensa angolana disse o seguinte:
“ A mais insidiosa e assombrante ameaça que pesa sobre o
futuro da imprensa privada angolana é económica. Na maioria dos países
africanos os jornais são normalmente financiados por homens de negócios e
subsidiados pelos respectivos governos. Em Angola os jornais privados nasceram
da iniciativa de jornalistas ou agremiações cujas dificuldades financeiras são
muito graves”.
É caso para concluir que em Angola os riscos da dependência
económica e financeira dos média a pôr em causa a sua independência editorial
existe sobretudo pela omissão, pelo distanciamento, pela falta de apoio, pelo
apelo ao desinvestimento.
É como se estivessem dizer claramente, parafraseando o
poeta, não sabemos para onde vamos, mas sabemos bem que por aí é que não vamos,
porque nós não gostamos da vossa intervenção e o que o mais desejamos é que
desapareçam da circulação. Que morram de inanição.
Contrariamente a maior parte dos países onde a tendência do
capital financeiro é tomar de assalto as empresas jornalísticas, por aqui
sente-se que a orientação vai no sentido desse capital, que já é uma realidade
na nossa economia, se afastar delas. Para além de ainda ser um investimento de riso,
percebe-se que assim seja, porque a maior parte dos nossos capitalistas mantêm
com o regime uma relação de grande fidelidade política, que, está, aliás, na
origem das suas próprias fortunas.
Para além de um ambiente político marcadamente hostil, a
realidade objectiva de um mercado dominado pela instabilidade, inflação,
paralisia da maior parte das suas empresas produtivas, elevadas taxas de
desemprego e miséria galopante, completam o quadro das grandes adversidades que
hoje ameaçam seriamente a sobrevivência dos médias já estabelecidos ao mesmo
tempo que condicionam fortemente o surgimento de novos projectos editoriais
quer ao nível da imprensa como da radiodifusão.
Tendo por pano de fundo este quadro tão cinzento e passando
para a identificação mais concreta de alguns factores objectivos de
estrangulamento da actividade dos médias
destacamos os seguintes:
1. Ausência
quase total do investimento privado no sector da imprensa e da radiodifusão;
2. Desinteresse
do governo em apoiar minimamente com os meios ao seu dispor, nomeadamente com
incentivos fiscais, o desenvolvimento da imprensa, que, como se sabe, depende a
cem por cento da importação do papel e de todos os seus consumíveis;
3. Receitas
publicitárias insignificantes que na maior parte dos casos não cobrem sequer
dez por cento das necessidades dos órgãos;
4. Ausência
de um parque gráfico competitivo a par dos elevados preços praticados pelas
duas únicas gráficas que em Luanda têm capacidade de prestar serviços com
qualidade. Poder de compra da população em permanente declínio, a afectar
profundamente os resultados das vendas com as tiragens já de si bastante
reduzidas;
5. Desinteresse por parte dos agentes económicos
em relação à distribuição a nível nacional dos semanários que se publicam em
Luanda;
As contradições do MPLA
As recentes declarações de um representante da mais alta
hierarquia do MPLA que claramente apontavam para um tratamento pelo Estado da
imprensa privada sem ter em conta a especificidade das emergentes empresas
jornalísticas, no âmbito do próprio processo de democratização em curso,
parecem chocar com o programa desse mesmo partido aprovado em Dezembro de 98 no
seu quarto Congresso.
Antes de mais o MPLA defende a liberdade de expressão e de
imprensa e o direito à informação como premissas fundamentais para a realização
de um jornalismo moderno, participativo e responsável.
Será possível alcançar um tal desiderato deixando morrer
todos os jornais de que não gostamos?
O MPLA, decidiram os seus membros, é um partido que aposta
actualmente na promoção de uma política pragmática que garanta a realização de
investimentos oportunos que aumentem a capacidade técnica dos Meios de
Comunicação Social.
Mais do isso, o seu quarto Congresso o MPLA pronunciou-se
pela liberalização e privatização da comunicação social, com as limitações e
restrições que o interesse nacional aconselhar. Um pronunciamento que tem a
força de um incentivo, com todas as consequências que o significado do termo
implica.
Incentivar é muito mais do que sugerir ou estar de acordo.
Incentivar pressupõe agir, mobilizar, adoptar iniciativas pertinentes no
sentido que se pretende alcançar.
É bom que se note que no seu programa o MPLA nunca se refere
ao tipo de CS, isto é, não faz qualquer separação entre CS estatal ou privada,
ficando-se apenas pela referência aos Meios de Comunicação Social, o que também
tem um significado.
A grande novidade positiva que o controverso ante-projecto
da lei de imprensa que o Governo elaborou e submeteu à discussão da classe em
particular, contém, passa exactamente pela necessidade do Estado adoptar em
relação à imprensa uma postura de apoio e fomento.
O ante-projecto considera ser um dever do Estado promover e
proteger a imprensa, devendo para tal ser organizado um sistema de incentivos
de apoio, baseado em critérios gerais e objectivos a determinar em lei específica.
Fica assim claro que o Governo já se comprometeu a abrir os cordões à bolsa, na
sequência, aliás, das orientações constantes da resolução aprovada pela
Assembleia Nacional quando se discutiu
em Janeiro de 2000 a problemática da liberdade de imprensa.
A resolução, cujo projecto foi apresentado à votação da
plenária pelo MPLA recomenda ao governo “ a
formulação e adopção de uma adequada estratégia de desenvolvimento da
comunicação social nacional, pública e privada, incluíndo o fomento da imprensa
regional, assim como o estudo de formas de subsídios e isenções a conceder à
mesma”.
Como é evidente, os gestores da imprensa privada não estão
sentados à espera que lhes caia do céu o prometido maná. Se tivessem observado
uma tal postura talvez os semanários que hoje ainda vão circulando já tivessem
desaparecido do mapa conforme é desejo de muito boa gente.
Estamos contudo, convencidos, que muito mais poderá ser feito
pelos patrões da imprensa independente, no quadro de uma urgente concertação
destinada sobretudo a resolver em conjunto o problema da matéria prima e dos
consumíveis.
A existência de uma recentemente proclamada associação da
imprensa privada, é certamente um instrumento da maior importância nesta luta
pela sobrevivência de um segmento do mercado, onde as empresas isoladas
dificilmente conseguirão resistir a manter-se a actual conjuntura
político-económica.
Quanto ao resto, só mesmo o futuro nos poderá dizer algo,
pois de uma forma geral todas as actividades empresariais em Angola, tendo em
vista a sua consolidação e expansão, enfrentam o mesmo drama. O drama de um
mercado onde a maior parte dos consumidores está reduzido ao mínimo dos
mínimos. Este mínimo é o pão nosso de cada dia a dia, com um bocado de água e
sal, o que de facto não permite que nenhuma actividade económica possa
florescer e que transforma os jornais em produtos absolutamente supérfluos. De
verdadeiro luxo.
* Texto da comunicação apresentada no workshop organizado pelo MISA sobre ética jornalística de Angola que decorreu em Luanda de 5 a 7 de Novembro de 2001