Estive fora de Luanda por cerca de 15 dias, razão que me forçou a interromper este contacto semanal, não tanto por estar no exterior do país, mas mais porque o meu PC, num estranho acesso de patriotismo, decidiu que não funcionava fora das nossas fronteiras, numa postura marcadamente anti-globalização.
Felizmente que a avaria foi de pouca monta, tendo o meu concessionário que é a Sistec resolvido de imediato o problema sem custos adicionais, o que (uma vez mais) me deixou bastante satisfeito com o desempenho desta empresa por quem tenho a maior consideração devido sobretudo a sua filosofia de trabalho, onde o lucro nem sempre se conta com mais uns tostões amealhados com a venda disto ou daquilo.
A satisfação do cliente a custo zero é por vezes um lucro que vale muito mais em termos de futuro e de sustentabilidade da própria empresa, do que a venda imediata de mais um produto ou um equipamento sem qualquer tipo de garantia ou assistência.
Feita esta “publicidade” gratuita à Sistec, que bem a merece, passemos ao que interessa nesta primeira crónica no meu regresso à pátria querida, mas nem sempre bem amada por todos, como deveria ser, sobretudo por aqueles que têm maiores responsabilidades com ela devido à inerência dos cargos públicos que ocupam.
No meu regresso a Luanda a primeira notícia foi-me dada por uma das minhas filhas mais novas, a Xita, que parece ter herdado de alguém que lhe é muito próximo o faro para as novidades.
Papá, disse-me, vão começar as obras no Kinaxixi, local que ela conhece muito bem, embora seja como eu uma autóctone da Vila-Alice (VA).
Aliás, ela é mais da Vila do que eu, pois eu sou originário da Maianga onde nasci e vivi os primeiros cinco anos da minha infância antes de me transferir para a Rua Alda Lara do glorioso bairro Kuba, uma das trincheiras mais firmes da resistência anti-colonial localizada na parte meridional da VA, tendo como fronteira a Estrada de Catete.
A notícia que a Xita me estava a dar tinha a ver, obviamente, com o inicio da destruição do Mercado do Kinaxixi, seis anos depois do processo ter arrancado como mais uma crónica de uma morte anunciada e de ter provocado um dos maiores dos sururus políticos da segunda República. Na sequência deste desenvolvimento foi criada em 2002 uma das raras Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) que a nossa Assembleia Nacional produziu ao longo de 16 anos de um prolongadíssimo e super-governamentalizado mandato que vai certamente entrar, como um “case-study”, para a história das democracias parlamentares multipartidárias.
A outra Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Assembleia Nacional eleita em 1992 foi para apurar a violência étnica que se abateu em 1993 sobre os bakongos na cidade de Luanda.
O trágico episódio ficou tristemente conhecido por “Sexta-feira sangrenta”, tendo a CPI criada para averiguar o criminoso ataque, resultado de uma iniciativa que teve muito a ver com o dinamismo do malogrado deputado do PDP-ANA, Mfulumpinga Landu Victor.
Se estivesse vivo, Mfulumpinga seria sem dúvidas um das grandes estrelas da actual campanha eleitoral, que pela sua mornez, de facto está a precisar de alguém com o “fenotipo” do assassinado político.
Convenhamos que num país com as características de Angola, onde a falta de transparência das instituições oficiais é uma das grandes preocupações da sociedade no seu conjunto, o surgimento de apenas duas comissões parlamentares de inquérito para um mandato de 16 anos é de facto muito pouca “fruta”.
Muito pouca “fruta” que traduz bem o fraco desempenho da função fiscalizadora da Assembleia Nacional, que, efectivamente, andou esses anos todos a reboque das encomendas legislativas do Executivo, sem grande espaço de manobra para assumir devidamente as outras vertentes do seu poder.
Pelo que julgamos saber a CPI que se debruçou sobre o dossier Mercado do Kinaxixi apenas terá caucionado a gestão privada daquela instalação, com a sua recuperação e modernização, sem nunca ter dado luz verde à destruição daquele património que acabou por acontecer seis anos depois.
Este assunto merece certamente alguma investigação para se apurar o que realmente a CPI do Kinaxixi recomendou no final do seu atribulado mandato.
O Kinaxixi desapareceu assim da nossa paisagem urbana e histórica por força de um camartelo cego que continua a ter demasiado poder para ser parado por quem quer que seja neste país.
No seu lugar e enquanto não se erguem as torres da ganância, da ostentação e da ignorância típicas do novo-riquismo que anda por aí furioso e à solta, ficou um imenso vazio que nos asfixia a alma e nos deixa profundamente tristes com a perda de mais um emblemático local da nossa memória.
Para quem como eu cresceu passando todos os domingos por aquele mercado em direcção a classe central da Igreja Metodista, não é fácil aceitar um tamanho atentado contra o património da nossa cidade.
Não estamos, obviamente, contra o surgimento dos shoppings nem dos arranha-céus, mas não podemos aceitar que eles nasçam destruindo tudo quanto é história e memória desta cidade, num país, onde o que mais existe é espaço de sobra o desenvolvimento de novas urbanizações, para a edificação de novas cidades.
Como não estamos de acordo com este “assalto” que já é uma tendência sólida em termos de gestão do espaço urbano luandense, a influenciar os decisores do poder político cada vez mais permeáveis a este tipo de “sedução”, tendo em conta as suas contrapartidas, só nos resta fazer aqui o nosso komba pelo Kinaxixi.
Com o passar dos anos, no fundo da minha ingenuidade, ainda cheguei a acreditar que o mercado seria poupado.
Ainda cheguei a acreditar que todos aqueles que se ergueram contra o Projecto Baía, teriam agora razões muito mais sólidas para lavrarem em público o seu protesto.
Com raríssimas excepções, só ouvi o seu silêncio.
Com esta demissão colectiva da sociedade civil angolana, a especulação imobiliária e o camartelo receberam mais uma forte mensagem de encorajamento.