quarta-feira, 23 de setembro de 2009
JES-30 anos depois sem ainda ter enfrentado o seu maior desafio
Antes de qualquer outra consideração sobre a abordagem que me foi solicitada pela “A Capital” relativa ao já longevo consulado do Presidente José Eduardo dos Santos que este ano assinala o seu 30º aniversário, devo dizer que sou das pessoas que deixou de acreditar há muito tempo nas virtualidades de prolongadas permanências no poder seja de quem for, não importa o nível da hierarquia que esteja em apreciação, o regime político e muito menos o país ou a região.
A bitola de avaliação é a mesma: O tempo desgasta.
Mais concretamente, o meu (não) acreditar aqui tem a ver com a existência de vantagens para a colectividade que resultem de tais permanências, por mais que os aparelhos propagandísticos de serviço se esforcem de nos convencer do contrário, com mais diferentes e criativas analogias, como aquela que compara os políticos com o whsiky.
Devo confessar que ideologicamente fui educado nas teses leninistas do partido único, onde o papel clarividente da vanguarda e do seu líder era inquestionável, era o núcleo duro da doutrina, o que abriu caminho para o tão famoso, quanto famigerado culto da personalidade.
Não me esqueço do meu passado e das minhas convicções juvenis, mas como nunca tive qualquer capacidade de influenciar directamente os desastrosos rumos que este país seguiu, sinto-me, de algum modo, um elemento neutro em todas as makas que foram acontecendo por estas bandas e que bem poderiam ser evitadas se houvesse maior capacidade de prever o futuro, o que também deve ser um apanágio de quem está na política.
Em Angola não foi.
Depois de tudo quanto testemunhei e vivi, estou hoje mais convencido do que nunca que, na política (serviço público), o passar dos anos, a partir de certa altura, para além de outros inconvenientes que sobram para todos nós, começa a ser o maior adversário do titular que deseja eternizar-se no cargo que ocupa. Quanto mais anos se fica no poder, pior será o desempenho do titular em termos qualitativos, de aceitação e de lucidez.
A lei do desgaste é inexorável, devendo ser ela a melhor conselheira de todos os políticos do país e do mundo.
É preciso pois, mesmo quando não haja qualquer limitação legal do mandato, saber sair na melhor altura.
No futebol, o Rei Pelé ensinou-nos a todos a saber sair por cima, mas nem todos, lamentavelmente, sobretudo nos campos da política, quiseram aprender com ele. Os resultados estão à vista de todos nos países onde o apego ao poder por parte dos titulares ultrapassou alguns limites aceitáveis.
É bom notar que nos Estados Unidos só em 1951 é que foi aprovada a emenda constitucional que passou a limitar os mandatos do seu Presidente a duas candidaturas, o que quer dizer que o suposto homem mais poderoso do mundo, desde então, só pode ficar no “poleiro” oito anos. Nem mais um.
Dito isto e olhando seguidamente para o consulado do Presidente José Eduardo dos Santos, trinta anos depois dele ter sido indicado pelo BP do MPLA-PT para substituir Agostinho Neto, fica implícito pelas nossas considerações iniciais, que o seu desempenho, ao fim de tantos anos de poder só pode, naturalmente, ter sido afectado pelo “vírus da longevidade política”, com todas as suas consequências que cada um de nós saberá identificar, sem termos necessidade de as estar aqui a identificar uma por uma.
Está-se de facto diante de um “vírus” que ataca os seus portadores em função dos contextos políticos em que se movimentam, com resultados nem sempre iguais, embora na essência eles não se diferenciem muito nos seus aspectos menos positivos ou mais problemáticos.
Trinta anos, é muito tempo de poder para a nossa concepção deste exercício político, com a agravante de estarmos a viver num país que não criou alternativas, começando pelo próprio MPLA que até agora não tem claramente definido aquele que será o sucessor de JES depois das várias experiências “delfinescas” mal sucedidas.
Em termos mais concretos não é fácil olhar com olhos de ver para os últimos 30 anos de poder de José Eduardo dos Santos e muito menos tirar outras conclusões mais definitivas, para além daquelas que são evidentes e que têm a ver com o estado em que se encontra a nossa Angola de hoje.
São estas evidências que, feitas algumas contas pouco consensuais, os seus mais entusiastas seguidores fazem questão de destacar no âmbito da campanha em prol da sua eternização no poder, que um polémico acórdão do Tribunal Supremo já fez questão de “legitimar”, concedendo a JES o direito de desfrutar mais três mandatos constitucionais ao abrigo do texto fundamental em vigor.
Pela positiva, primeiro diríamos que JES teve o mérito de ser dos poucos líderes africanos, senão mesmo o único, que, apesar de ter chegado ao poder sem ter sido democraticamente eleito, não fez qualquer assalto ao mesmo, tendo a sua entronização resultado de um consenso dos seus companheiros de percurso. Por outras palavras, não houve qualquer golpe de estado na génese, algo suis generis do seu consulado, o que em África é, efectivamente, uma nota positiva que a história não deve ignorar.
O mais interessante neste render da guarda é que ela terá sido mesmo feita contra a própria vontade pessoal de um JES com 37 anos de idade, facto que ele, por vezes, faz questão de recordar aos seus correligionários, quando se trata de serem chamados a assumirem responsabilidades que não desejam.
Foi de facto e de jure uma transição absolutamente pacífica, numa altura em que, entretanto, o país já estava a ferro e fogo com uma devastadora guerra civil, com o envolvimento de poderosas componentes externas de ambos os lados da barricada da tragédia nacional.
Na sequência dos contactos diplomáticos que Agostinho Neto já teria iniciado com a África do Sul, JES, segundo algumas avaliações, poderia ter encurtado drasticamente os dias do conflito, numa altura em que o Galo Negro ainda era um “pintinho”, o que certamente teria facilitado as negociações e poupado o país a tamanha devastação material e humana, caso o processo de paz tivesse arrancado na altura.
JES nesta avaliação retrospectiva, quanto a nós, tem a seu favor, o facto relevante de não ter o seu nome ligado a monumental e sanguinária repressão que se seguiu aos acontecimentos do 27 de Maio de 1977, sem dúvida a mancha mais negativa que marcou a primeira República que ele herdou do “pai” Agostinho Neto. Ao que consta JES terá sido mesmo investigado pelos torcionários da época, um dos quais, que continua bem “vivinho da silva”, se referiu a ele nos últimos anos como sendo um “presidente frouxo”.
JES teve a primeira etapa do seu consulado dominada pelo regime de partido único, pelo que não se lhe pode assacar directamente a responsabilidade de não ter democratizado o sistema, embora também não possa ser elogiado por, de algum modo, ter antecipado ou admitido esta possibilidade.
Antes pelo contrário.
JES, numa das suas declarações mais complicadas para a sua imagem, feita na primeira República, chegou a afirmar que os africanos não estavam preparados para viver em democracia. Alguns anos depois e já com o país a viver uma outra realidade política, JES viria a fazer um pronunciamento semelhante, salvaguardadas as devidas distâncias, quando declarou que a democracia e os direitos humanos não enchem a barriga de ninguém.
Este “défice democrático estrutural” de JES é-lhe apontado permanentemente pelos seus críticos e adversários.
Em 2003 numa das suas intervenções políticas mais bem estruturadas do ponto de vista da sua adesão aos princípios democráticos, JES apontou cinco desafios a vencer pelo MPLA que mantêm toda a pertinência e actualidade nos dias de hoje, particularmente pelo muito que ainda há por fazer rumo à efectiva democratização do país.
“1. A consolidação da Paz, que engloba a promoção da reconciliação nacional e a reconstrução do país; 2. A consolidação da Democracia e do Estado de Direito e o respeito pelos Direitos Humanos; 3. A boa governação, que se traduza numa gestão eficiente e transparente da despesa pública e na utilização racional e sustentável dos recursos humanos, tendo no seu epicentro o cidadão angolano, as suas aspirações individuais e colectivas; 4. A redução da intervenção directa do Estado na economia, em troca do reforço do seu papel regulador, propiciando o crescimento económico sustentável, o aumento da riqueza nacional e o combate ao desemprego e à fome; 5. As relações políticas e económicas regionais e internacionais que lhe garantam estabilidade e desenvolvimento.”
JES acrescentou que “a consolidação da paz e da democracia traz implícita a legitimação periódica dos órgãos de soberania, o que nos leva a reconhecer como justa e a subscrever a inquietação que sido expressa quanto ao futuro das eleições gerais no país”.
É fácil identificar no percurso discursivo de JES uma trajectória não muito linear e coerente, havendo mesmo a registar algumas contradições gritantes no seu discurso. É o que dá discursar durante 30 anos. É de facto um grande risco político.
Com todas as críticas que se possam fazer ao seu percurso e que são mais do que muitas e depois de ter vencido e derrotado todos seus adversários e inimigos, o “campeão” JES enfrenta agora o seu maior desafio de sempre nas pistas conflituosas de um país que ainda não se reencontrou.
Sair agora e bem por cima ou continuar no poder por mais 15 anos, isto é, até aos 82 anos, sem saber muito bem como vai lá chegar e como depois deverá sair e ser recordado.
Receamos que JES venha a escolher a segunda opção.
(Com a assinatura de Reginaldo Silva este texto foi solicitado e publicado pelo semanário "A Capital")