Definir o papel da comunicação social na
mobilização da opinião pública é, antes de mais, começar por destacar o facto
de o país ter mudado da noite para o dia, embora o seu novo rosto ainda esteja
para chegar.
Mais precisamente, diríamos que Angola está
paulatinamente a mudar, para melhor certamente, com todas as hesitações que se
conhecem, porque ficar pior do que se estava antes do 22 de Fevereiro de 2002,
é quase uma missão impossível.
Ainda bem, para a felicidade de todos nós,
que ninguém mais determinado apareceu nos últimos tempos a tentar saber se de
facto é mesmo impossível realizar uma tal missão.
Uma constatação que atesta para já a solidez
e a irreversibilidade do processo em curso, sem, contudo, lhe retirar do
caminho os obstáculos, as incertezas e as frustrações que continuam a alimentar
a crónica diária deste país.
Parte importante deles são, sem dúvida, directamente resultantes da guerra ora
terminada, reunidos no pacote da gigantesca crise humanitária herdada.
Obstáculos, incertezas e frustrações que
ganharam agora uma maior visibilidade, com a saída do palco do conflito bélico
que tanto atormentou o país.
Aos olhos do país, a referida alimentação
mediática é visível na produção de notícias por vezes demasiado preocupantes
mas em doses que, aparentemente, ainda estão sob controlo, para utilizarmos um
dos chavões mais queridos do discurso oficial.
O outro se quiserem saber é o “balanço é positivo, apesar de tudo”.
A comunicação social, tendo o jornalismo
como principal instrumento, é chamada a descodificar diariamente este e outros
discursos prenhes de chavões e frases feitas que lhe chegam das mais diferentes
proveniências, numa operação complicada de dessacralização do texto, que
abordaremos mais adiante.
No actual contexto de mudança, que mudanças
se esperam da comunicação social, para que ela acerte o passo com os novos
ventos que sopram sobre o país, parece-nos ser a questão de fundo subjacente ao
tema genérico que nos foi sugerido pelos organizadores destas Sétimas Jornadas
Técnico-Científicas da FESA, o que desde já traz implícita uma certa crítica,
passível de alguma controvérsia.
É a eterna controvérsia à volta do papel
ideal que a comunicação social deve desempenhar em Angola. Uma controvérsia que
tantos bons e maus momentos já produziu em matéria de debate de ideias, a
prometer-nos, entretanto, não deixar a agenda nacional em paz.
De facto, o entendimento à volta desta
problemática, se é que algum dia ele será alcançado, vai continuar a exigir de
todos os interessados esforços suplementares orientados para a procura de um
denominador comum, por menor que seja.
Esta procura que não tem nada a ver com os unanimismos do passado, também se enquadra,
quanto à nós, no próprio processo de reconciliação.
Uma controvérsia que em termos mais
académicos poderia ser explicada pelo conflito permanente existente entre as
duas principais concepções teóricas relativas a articulação do jornalismo com a
ética.
De acordo com a professora universitária
portuguesa Francisca Ester de Sá Marques, a primeira concepção, a liberal, propõe a
tese de que o público ou a sociedade tem ou deve ter autonomia suficiente para
determinar suas próprias regras e normas, a partir de uma ordem natural, onde a
liberdade individual aparece como o pressuposto fundamental, em detrimento do
exercício colectivo. A segunda, a igualitária ou estatal, defende que o Estado,
ao constatar a limitação da liberdade individual, e com base numa ordem gerada,
fundamenta-se como o guardião das regras e normas sociais, portanto,
responsável pela protecção da liberdade colectiva dos homens.
A liberal, leva em consideração a liberdade
expressiva do cidadão no exercício da sua soberania democrática, baseada numa
sociabilidade cujos processos de livre interlocução e de interacção garantem o
entendimento e a acção comum.
A estatal, embora compreenda a liberdade
expressiva do cidadão, procura regular, através da condução da liberdade
colectiva, as relações sociais entre os grupos, e entre estes e os indivíduos,
como a guardiã do sistema de valores e, consequentemente, da cultura. O Estado
define-se como o gestor moral convencional das várias dimensões da experiência,
sobretudo do entendimento e da interacção humanas que ocorrem tanto no espaço
público, quanto no espaço privado. (1)
Tendo por pano de fundo estas duas
concepções teóricas fica um pouco mais fácil evoluirmos no território que nos é
oferecido para abordarmos o papel que a comunicação social deve ter na mobilização
da opinião pública, no actual contexto que o país vive, onde a principal nota
dominante é de facto, e sem qualquer dúvida, a paz militar tão duramente
alcançada.
Uma paz que vai naturalmente criar, aliás,
já está a criar, as condições para que o país resolva os seus gravíssimos
problemas sociais e económicos, acumulados, agravados e ampliados, ao longo das
várias de décadas de persistente conflito militar.
Partimos pois do principio que esta
mobilização da opinião pública, só pode ser feita num sentido, o sentido da
normalização a todos os níveis, que é, exactamente, aquele que o país está a
tentar percorrer, já lá vão cerca de 18 meses, desde que as armas se calaram na
maior parte do território nacional, com a bem conhecida e lamentável excepção
de Cabinda.
Até quando?
Pela natureza intrínseca do discurso
jornalístico de referência, que entra naturalmente em choque com as motivações
do outro discurso seu meio-irmão, que é o da propaganda, a comunicação social
só tem uma solução deontologicamente aceitável no que toca à forma como deverá
contribuir para a mobilização da opinião pública.
Aliás, a comunicação social, se pautar a sua
intervenção pelo conjunto de valores universais que fazem actualmente do
jornalismo um produto muito especial no seu relacionamento com a sociedade, ela
tem muito pouco a fazer quando se trata de se adaptar a novas conjunturas.
Diríamos que ela se adapta automaticamente, sem qualquer tipo de investimento
mais estrutural.
Abrimos aqui um pequeno parêntese para
salientar que o jornalismo conta com uma protecção especial na Constituição dos
Estados Unidos, clausula esta contida na Primeira Emenda Constitucional.
Esta protecção é dada ao jornal não porque ele seja um ramo de negócio, mas
porque serve a um fim único numa sociedade livre.
E esse fim, se nos permitirem a interpretação, é descobrir a verdade e contá-la
ao povo.
Em relação ao conteúdo da solução atrás
referida, ela tem a ver tão-somente com a divulgação dos factos relevantes que
tenham interesse público, assumindo nesta conformidade o estatuto de notícias.
Notícias estas, que acabam por ser, o
principal produto de qualquer média que se preze.
O que acabamos de afirmar pertence quase ao
domínio do óbvio, mas entre nós tal domínio nem sempre é tão evidente como
deveria ser.
Seja como for a definição do que é ou não
notícia, longe de ser uma discussão bizantina à volta do sexo dos anjos, assume
no nosso contexto uma grande importância estratégica, tendo em vista a
clarificação do nosso panorama mediático.
O problema aqui é, claramente, fazer separação do trigo do joio. Entre nós, a
confusão ainda é muito grande entre os discursos, tendo como balizas, de um
lado o discurso jornalístico e do outro o discurso propagandístico.
Voltamos a beber da filosofia da professora
Francisca Ester de Sá Marques para corroborarmos da ideia segundo a qual, o
discurso jornalístico quando textualiza a realidade, parte do princípio
genérico de que o acontecimento ao ser transformado em notícia é pautado pela
verdade, pelo compromisso social, pela exactidão e pela relevância pública,
portanto, pela boa intenção de informar com isenção e de garantir a liberdade
de opinião.
Por outro lado, chama a atenção a nossa
virtual interlocutora, esse mesmo discurso constituído que é pelos
textos dos outros discursos tornados públicos (por consenso ou por dissenso) e
por seu próprio fazer específico, acaba produzindo efeitos éticos controversos
como resultado da reelaboração dessacralizante desses textos que, dependendo
dos quadros de significados apreendidos socialmente, são aceites ou rejeitados
pela opinião pública.
É, conclui a professora Francisca Ester de
Sá Marques, na reelaboração dessacralizante desses textos que o discurso
jornalístico esbarra ora numa concepção liberal da ética quando diz que o
cidadão tem direito à liberdade de expressão; ora numa concepção igualitária da
ética quando tenta controlar os acontecimentos no espaço público à semelhança
do Estado.
No caso concreto de Angola, tendo em conta
todas as águas que já passaram debaixo desta ponte desde que o processo de
abertura política teve inicio, já lá vão mais de 12 anos, não tem sido fácil
encontrar um compromisso entre estas duas concepções, o que desde já coloca
algumas dificuldades na definição do papel ideal que a comunicação social
deverá assumir na mobilização da opinião pública no actual contexto que o país
vive.
Em Angola a comunicação social e os
jornalistas estão cada vez mais no centro de um cruzamento onde circulam vários
e contraditórios interesses; onde o cidadão comum tem cada vez mais
dificuldades em entender a lógica e o altruísmo do discurso oficial; onde o
Estado que em princípio é uma pessoa abstracta de bem, se confunde muitas vezes
com os interesses particulares deste ou daquele servidor público; onde os problemas
da transparência, da boa governação e da corrupção institucionalizada já são
frontalmente assumidos pelo próprio executivo, ao seu mais alto nível de
decisão política.
Segundo outras avaliações mais radicais, o
quadro é muito mais cinzento, numa alusão implícita à problemática da
distribuição do rendimento nacional pelo conjunto das classes sociais que
integram o universo angolano.
A transição do modelo socializante de
economia centralizada que o sistema de partido único tentou edificar até finais
da década de oitenta, para uma economia aberta de mercado, resguardada por um
projecto democrático multipartidário - tem estado a ser extremamente dolorosa e
acompanhada por uma crise de valores sem precedentes, cuja tendência parece ser
a sua cristalização.
De uma coisa estamos certos, nada voltará a ser como dantes.
À falta de uma melhor definição, é, de
acordo com alguns analistas, de capitalismo selvagem, com o estado-previdência
transformado agora no estado-patrão, que se trata, com todas as consequências
sociais extremamente negativas daí resultantes, cujo impacto é facilmente
visível no tecido humano, a inspirar sérios cuidados.
Como mobilizar a opinião pública, tendo como
pano de fundo estas e outras referências não é, certamente, uma tarefa fácil para
a comunicação social cujo principal compromisso é, antes de mais, com a verdade
dos factos relevantes que vão acontecendo num país chamado Angola.
É ponto assente que a recomendável e
possível objectividade jornalística, está dependente da subjectividade do
profissional que tem a responsabilidade de seleccionar as matérias que vão ser
abordadas num determinado momento.
É dado adquirido, até por questões de
espaço, que não se podem relatar todos os factos relevantes que um país com as
condições anormais de Angola produz diariamente em doses industriais.
São por vezes matérias verdadeiramente
explosivas, para a própria estabilidade e coesão nacionais, que não é, contudo,
possível ignorar, a não ser que optemos pelo comportamento da avestruz.
Como nos devemos posicionar neste mar
revolto em que o país vai continuar a navegar, já liberto das amarras da
guerra, é pois a grande questão que nos temos que colocar diariamente, enquanto
profissionais do jornalismo, preocupados com esta necessidade de mobilizar a opinião
pública para as prioridades da reconstrução e da reconciliação.
Por mais que tenhamos uma ideia clara deste
posicionamento, de muito pouco nos adiantará, pois no jornalismo a sério, a
vida reparte-se por capítulos diários, sempre diferentes uns dos outros.
Há mesmo quem defenda a ideia de que os jornalistas escrevem diariamente a
história de um país.
Pelas limitações que se colocam ao exercício desta profissão, concordaremos que
eles apenas contribuem de forma decisiva para que esta história seja devidamente
elaborada no futuro pelos especialistas.
Todos os dias, de facto, temos de tomar
decisões editoriais importantes, particularmente ao nível da selecção,
confrontados com a multiplicidade dos factos que vão acontecendo e conscientes
de que nem todos vão poder virar notícia.
De uma forma geral pode afirmar-se que a
comunicação social é um dos novos fenómeno da sociedade angolana, que está a
viver uma complicada e prolongada fase de transição para a democracia, desde
que em 1992 foram realizadas as primeiras eleições multipartidárias.
Os angolanos descobriram e começaram a
exercer as novas liberdades democráticas em grande medida, por intermédio dos
órgãos de informação tanto os estatais como os privados, tendo por pano de
fundo um ambiente contraditório, onde as tendências autoritárias e repressivas
do passado monolítico ainda se mantêm bastante fortes a ofuscarem os novos
valores e princípios democráticos que paulatinamente estão a emergir e a
afirmar-se.
Pela sua essência o jornalismo sempre foi a
primeira frente de choque contra todos os tipos de violência e violações, pelo
simples facto de que tais comportamentos são acontecimentos públicos difíceis
de ignorar, por quem queira pautar a sua conduta profissional por algum rigor e
isenção e objectividade.
E aqui, por favor, não nos venham com a
famosa conversa das linhas editoriais, porque aqui o problema é acima de tudo
constitucional, pelo que todas as restantes linhas devem obediência às fortes
linhas da nossa constituição que tem de ser respeitada por todos.
Longe das unanimidades e das subserviências
que já fizeram história entre nós, em democracia o relacionamento entre o poder
político e os médias (que acabam por representar um outro poder) é invariavelmente conflituoso, faz parte do
sistema, é estrutural.
Aliás, é assim mesmo que o sistema
democrático funciona e funciona mais ou menos bem com todos os defeitos que se
lhe conhecem.
O outro sistema, o do partido único, do ponto de vista da eficácia e da
rapidez, funcionava sem dúvida muito melhor, só que, entre nós, aparentemente
já ninguém o quer (re) assumir.
Definitivamente, em democracia não se passam
cheques em branco a ninguém, incluindo os governos que por outro lado não podem
ser confundidos com os Estados. Pelo menos não os esgotam.
O Estado é uma entidade mais abrangente, que
para além do executivo propriamente dito, integra um conjunto de outros órgãos
de soberania, numa altura em que se discute bastante a necessidade de termos um
Estado cada vez mais próximo dos cidadãos.
Por outro lado é bom que se entenda,
definitivamente, que a comunicação social estatal tem responsabilidades
editoriais acrescidas no seu relacionamento com o todo nacional, devido ao seu
caracter público, o que pressupõe uma atenção permanente a questões como o
equilíbrio e a isenção no tratamento dos diferentes interesses que se cruzam e
se chocam no grande ringue nacional.
A analogia do país com um ringue de boxe ou de luta livre não podia ser mais
expressiva e elucidativa, por todas as razões sobejamente conhecidas.
Os consensos por aqui ainda são muito difíceis de obter, devido ao longo
passado de conflitos para todos os gostos e feitios que tem marcado a história
deste país.
A maior parte destes conflitos ainda está
por resolver, enquanto novos diferendos, até então reprimidos pela violência da
guerra, fazem a sua entrada em força no quotidiano dos angolanos, colocando
questões muito complicadas no que diz respeito ao seu tratamento pela
comunicação social, se os jornalistas estiverem realmente interessados em
desempenharem da melhor forma o seu papel, não importa para que “média” estejam
a trabalhar.
Não temos qualquer dúvida em afirmar que o
grande problema que o jornalismo enfrenta em todo o mundo, sem excepção, é a
sua afirmação como um poder independente ao serviço da sociedade e do interesse
público, que em democracia são as duas principais fontes de legitimação do
poder que se renova periodicamente pelo mecanismo sufrágio universal.
Um mecanismo que anda ausente de Angola já faz um bom tempo, após o seu primeiro
e trágico ensaio em 1992.
Uma ausência que explica parcialmente todos os problemas de relacionamento, de
equilíbrio e de tolerância que hoje se vivem por aqui, onde se incluem os da
comunicação social sobretudo na sua coabitação com o poder político.
Estamos convencidos que o regresso do país ao ciclo democrático normal, será
uma espécie de varinha mágica que irá resolver rapidamente parte significativa
destes problemas.
Tida para muitos como uma utopia, a
afirmação da independência do jornalismo é, na nossa modesta apreciação, a
essência da actividade jornalística de referência, que se deve manter como uma
orientação permanente de todos quantos trabalham no sector, não obstante todas
as dificuldades e bloqueios conjunturais.
Estamos a falar do jornalismo concebido naturalmente
como um serviço que se presta a toda a sociedade, onde estão incluídos os
cidadãos de todas as origens e opções e as instituições políticas, públicas,
privadas, económicas religiosas, culturais, desportivas, etc., etc..
A actividade jornalística só tem uma
possibilidade de desempenhar a sua missão com a necessária credibilidade se
conseguir minimamente salvaguardar a sua independência, numa luta permanente
contra todos os assaltos, a começar pelos proprietários dos próprios “média”,
que são os primeiros a franzirem o sobrolho ou arreganharem a testa quando se
lhes fala desta parte da história.
Em Angola está neste momento projectado um
cenário complexo, onde para já a única certeza é o facto de a guerra ter
deixado de ser o instrumento de morte e destruição que até o ano passado foi o
mais utilizado para tentar resolver conflitos em Angola.
Trata-se de uma ausência que já não é nada má, se tivermos em conta as
devastadoras consequências provocadas pela guerra a condicionar duramente as
perspectivas de desenvolvimento nacional nos próximos anos.
Longos anos, segundo algumas estimativas mais pessimistas ou realistas?
*Texto da Comunicação apresentada nas Sétimas Jornadas
Técnico-Científicas da FESA,
22 Agosto de 2003