Há mais de 50 anos o Boletim Oficial da então Província de Angola publicou um documento do “Fundo das Casas Económicas”, assinado pelo Presidente da sua Comissão Administrativa, Amadeu de Bettencourt Reys onde se fazia referência a um despacho do “Excelentíssimo Secretário Provincial” que tinha a data de 31 de Dezembro de 1960.
Este despacho continha a “lista dos candidatos admitidos definitivamente para efeito de distribuição de moradias de renda económica” ao abrigo das políticas públicas com que Portugal colonial tentava colmatar algumas das assimetrias criadas pelo seu colonialismo absorvendo parte das populações africanas.
Uma parte, diga-se, muito insignificante para o conjunto imenso dos excluídos dos musseques.
Tratava-se de uma lista bastante “misturada” de 89 pessoas, basicamente funcionários públicos, cujos rendimentos do agregado familiar estavam compreendidos entre um mínimo de 1.100 escudos e um máximo de 5 mil. Nesta lista na posição 16, figurava o nome do meu já falecido pai, José Augusto da Silva, tb conhecido por “Zé da Missão”.
O 16-R viria a ser o número da querida casa dos meus pais na Rua Alda Lara/Bairro Económico Dr. Manuel Figueira, localizado na Vila-Alice onde fui viver com pouco mais 4 anos de idade saído do Morro da Maianga.
Foi lá onde cresci e me fiz pessoa ao lado de muito boa gente, alguns dos quais hoje podem e mandam neste país.
O primeiro contrato de arrendamento que o meu pai celebrou em 1961 com o Fundo das Casas Económicas foi de 700 escudos por mês, tendo depois sido “reajustado” para 800.
Esta vim a saber depois era a tal renda resolúvel para ser paga por um período de 20 anos, findo o qual a casa passaria para o nome do meu pai, o que aconteceu já na vigência da República Popular de Angola, pois o tal Fundo bazou com o fim do regime colonial.
Fui ao baú das minhas recordações e dos meus papéis velhos buscar esta memória estimulado pelos desencontros que estão a ocorrer nos dias que passam com a gestão do novo património habitacional que o Estado angolano está a edificar e que tem nas publicitadas centralidades, entenda-se cidades, as suas estrelas mais reluzentes e… polémicas, onde o destaque vai, naturalmente, para a cidade do Kilamba.
De facto não se percebe que quando o Governo tem tudo e mais alguma coisa para brilhar, retirando todos os merecidos dividendos políticos do investimento, acabe por escorregar no seu próprio pavimento por questões meramente administrativas para não entrarmos noutros pormenores de bastidores.
Sabe-se, contudo, que estas “derrapagens” acontecem muitas vezes como resultado de um “modelo” mais atípico de gestão da coisa pública onde são fáceis de observar estranhos conflitos de interesses particulares que não deviam prevalecer, mas que acabam por impor o seu “diktat”.
Salvaguardadas as devidas distâncias, não tenho muitas dificuldades em afirmar que o Governo colonial tinha uma visão muito mais clara da política habitacional que promoveu em Angola a partir de meados da década de 50.
Não tenho igualmente dificuldades em aconselhar quem de direito a estudar esta experiência e a aplicá-la com as necessárias adaptações na Angola dos nossos sonhos, na Angola em que todos queremos acreditar, mas ainda temos muitas dúvidas, exactamente por causa de certas políticas públicas, que mais parecem do domínio privado.
Custou-me nos últimos dias ler algures na Net que Angola é o primeiro país africano onde foi construída uma cidade fantasma, numa referência directa ao que se está a passar com a cidade do Kilamba, tendo como pano de fundo a ocorrência deste tipo de “fenómeno” na China, na Europa e nos Estados Unidos.
“O síndroma da cidade-fantasma ataca África”, pode ler-se a dada altura na referida matéria escrita em francês e ilustrada com um vídeo do gigantesco projecto com que o Governo promove actualmente a sua imagem particularmente junto dos visitantes estrangeiros que têm passado por cá nos últimos meses.
Na China há colossais cidades fantasmas que estão construídas há mais de cinco anos e ainda não conseguirem preencher com pessoas/famílias nenhuma das centenas de torres que lá foram edificadas.
Como é evidente, não nos passa pela cabeça (nem em sonhos/ pesadelos) que tal venha a acontecer em Angola, sobretudo agora depois de termos começado a ouvir falar de outras soluções como o arrendamento e a famosa renda resolúvel.
A tal renda com que o colonialismo português decidiu há mais de 50 anos “oferecer” uma casa à minha família, que conservamos até aos dias de hoje numa das zonas mais seguras e simpáticas da nossa cada vez mais turbulenta capital. Curiosamente trata-se de um extraordinário bairro de onde saíram vários jovens que foram parar às cadeias da PIDE/DGS pela sua activa militância anti-colonial, tema para uma próxima crónica.
É preciso, contudo, andar-se mais rápido e definir-se claramente o que se pretende de uma vez por todas com a política habitacional do Estado, depois desta primeira etapa que não está a correr muito bem.
É que para além do Kilamba há outras centralidades que se preparam para entrar muito proximamente no “barulho”, que deste modo se pode tornar ensurdecedor.