segunda-feira, 17 de outubro de 2011

“Coisas da Vida”- A obra-prima do André Mingas e da música angolana

A primeira vez que ouvi falar do André Mingas (AM) foi no inicio da década de 70, por intermédio de um primo seu também já falecido, o Pino (Luís Felipe de Nery), filho do lendário Liceu Vieira Dias, que foi um dos meus grandes amigos, embora tivéssemos partilhado muito poucos anos de vida em comum, quase nenhuns.
Eu e o Pino fazíamos parte de um pequeno mas sólido grupo de amigos de peito do Bairro Económico/Vila-Alice que integrava o Mário Barber, o Gustavo da Conceição, o Rui Bastos e o Tó Santana, felizmente todos em vida com a excepção dele.
O bom do Pino morreu muito jovem num trágico acidente de viação em 78, numa viagem a caminho do sul ao serviço do cinema angolano para o qual tinha começado a trabalhar como câmara, acho eu.
Foi do Pino que ouvi o primeiro grande e convincente elogio sobre as potencialidades musicais do André Mingas, numa altura em que ele ainda dava os seus primeiros passos, com uma modesta participação ao nível dos coros no primeiro LP, o “Temas Angolanos”, que o Rui Mingas, seu irmão mais velho, gravou em Lisboa.
No seu estilo entusiasmado de sempre o Pino, que também já tinha abraçado a música por intermédio do violão que dedilhava com alguma facilidade, disse-nos qualquer coisa como isto, cito de memória, “está aí alguém da família a cantar muito, é o Andrezinho”.
Ele queria dizer claramente que o AM já não devia nada ao Rui e que muito cedo se afirmaria a solo como uma das grandes referências da nossa música urbana contemporânea. Para além da enorme beleza da sua voz, o André já cantava de forma diferente. Já tinha começado a inovar para o meio e para o tempo.
O Rui era na altura a nossa referência maior, com os seus “Temas Angolanos” e toda a sua história.
Foi de facto o que aconteceu, depois da “profecia” do Pino naquele ano já distante para as pesquisas da nossa memória que muito dificilmente conseguem reencontrar com precisão e pormenor o conteúdo do prognóstico feito pelo já apurado faro musical que o Pino possuía.
Entusiasmados e militantes em inicio da carreira nacionalista, com Liceu Vieira Dias já regressado do Tarrafal, discutíamos na época em sua casa com o Pino, o presente e o futuro da música e do país, de uma Angola que ainda era colónia, mas que já respirava os ares da liberdade e da independência.
Como interprete e compositor, André Mingas, que esta semana vimos partir para sempre aos 61 anos de idade, entrou pela porta grande para a galeria dos artistas angolanos que realmente souberam acrescentar valor e criatividade ao nosso património.
As consequências desta passagem de André Mingas pelas nossas vidas e os nossos palcos são visíveis um pouco por todo lado pois ele soube, como poucos, influenciar e alterar positivamente o curso normal dos acontecimentos.
Não é fácil traçar aqui de forma exaustiva a trajectória musical de André Mingas e o seu contributo, nomeadamente, para a renovação estética do semba, conferindo-lhe estatuto de cidadão do mundo, o que precisaria da necessária pesquisa que o tempo limitado para responder a este convite do “País” não permitiu.
Seja como for, não temos muitas dificuldades em concluir que André Mingas foi um dos grandes obreiros da internacionalização da música angolana de raiz, particularmente com o cruzamento/fusão do semba com outras linguagens extra-continentais, na linha do chamado afro-jazz, sem grandes, diria mesmo, sem nenhuns sacrifícios para a nossa angolanidade e para a identidade do próprio género nascido e criado em Luanda.
Neste diálogo de culturas, o semba esteve sempre em cima, a comandar a banda, sem recusar misturas com os molhos de fora, mas sem nunca perder o rumo e o sabor do nosso molho à kadimba.
Exemplo perfeito desta simbiose está no seu “Coisas da Vida” editado em 1991 pela Valentim de Carvalho, um trabalho que resultou de uma profícua colaboração com experimentados e virtuosos músicos brasileiros.
Já o escrevi com o AM em vida e volto aqui a reiterá-lo hoje depois da sua morte física: O “Coisas da Vida” é para mim o melhor e mais inovador trabalho de música angolana já editado entre nós, sem qualquer dúvida, para mim e para muito boa gente que comigo partilha deste “exagero” elevado à categoria da excelência e da paixão, pelo que é “nacional, é bom e nós gostamos”.
Para mim a música angolana também já se pode dividir entre o que aconteceu e o que se fez antes e depois deste trabalho emblemático.
Nestas “Coisas” todas que o André nos deixou está a verdadeira diferença entre o que veio para ficar transformando-se em património e referência e tudo aquilo que parece música mas não é nada, por isso hoje continuo a ouvir o disco do AM com o mesmo prazer dos primeiros dias quando ele surgiu nas nossas rádios.
Para além dos seus fabulosos arranjos musicais, o “Coisas da Vida” é também muita e requintada poesia do nosso quotidiano, escrita com imaginação, profundidade, sofisticação e beleza pura.
Com o “Coisas da Vida” aprendemos a detestar a mediocridade das “letras” que continuam a povoar a maior parte das músicas angolanas, verdadeiros festivais de banalidades e de disparates, quando não nos transmitem apenas uma sensação de vazio, de decepção e de irritação, tendo em conta o seu basismo e o apelo ao primário.
Definitivamente a música não é para isso, foi o que aprendemos com a arte do AM e muito particularmente com as “Coisas da Vida” que ele nos legou.
Sabendo que o AM já tinha finalizado o seu segundo trabalho que não tarda, estará aí à venda para o nosso reencontro com o homem e com a sua música, estamos certos que é quase impossível esta segunda aposta do André atingir a perfeição do “Coisas da Vida” que é de facto o seu testamento para todos nós e para a nossa satisfação de continuarmos a gostar de música angolana.
Nós os que apenas gostamos de ouvir boa música, mas também nós/eles que têm a responsabilidade de continuar a compor e a editar.
Para estes segundos que o AM vai continuar a ter uma grande utilidade prática.
(Este texto foi publicado no semanário o País)