Trata-se de um exercício que, para todos nós, que fomos
directamente tocados pelos acontecimentos, assume contornos especiais, na
homenagem que prestamos a milhares de compatriotas nossos, onde se incluem
amigos e familiares, que foram vítimas da voragem repressiva/assassina que
então se apoderou do país.
Uma voragem decidida ao mais alto nível da hierarquia
política que então nos governava e que foi executada de forma implacável pelos dirigentes,
oficiais e agentes da polícia política da época, a tenebrosa DISA, por mais de
dois anos em todo o país, onde foram criados verdadeiros “gulags”, isto é, campos
de concentração, para absorverem milhares de prisioneiros em condições
violadoras de todos os direitos humanos, começando pelo direito a um julgamento
justo.
Este ano estava sem saber muito bem do
que falar até que na passada quarta-feira tive um inesperado reencontro com o
passado que foi decisivo (estruturante) para a definição da minha actual forma de estar na
vida e muito particularmente do meu relacionamento com a política.]
Voltei esta quinta-feira a penetrar na cadeia de São
Paulo, 35 anos depois de lá ter entrado pela primeira vez, a 28 de Maio de 1977, como
prisioneiro político, na sequência da monumental e sangrenta caça às bruxas que
se seguiu ao acontecimentos de 27 de Maio de 1977. Sem acusação nem julgamento
permaneci na Prisão de São Paulo até ao dia 4 de Fevereiro de 1979.
O meu primeiro contacto com a Prisão de São Paulo é, contudo, muito mais antigo.
Tudo começou quando tinha por aí cinco ou seis anos de idade.
Foi nos idos de 60 que os meus contactos com a prisão de São Paulo tiveram início onde várias vezes fui com a minha mãe visitar o meu pai que era um "hóspede" regular da PIDE/DGS.
Lembro-me bem dessas visitas.
Um dos carcereiros do meu pai, o Sr. Marques mais a sua esposa, acabaram por ser os padrinhos da minha irmã mais nova, que nasceu em 1961, no ano em que o meu pai foi preso pela primeira vez tendo lá permanecido até 1963, salvo erro. Depois voltou em 66 onde ficou por menos tempo. Pelo que julgo saber o meu pai nunca foi julgado, mas quando saía aplicavam-lhe umas medidas de segurança que limitavam muito a sua vida como funcionário público. Por exemplo não podia concorrer a funções superiores no seu quadro da sua carreira, por isso ganhava muito mal.
A vida prega-nos com cada partida.
De facto, nada na minha agenda desta quinta-feira me faria adivinhar que eu poderia voltar hoje a franquear os portões daquela instituição, transformada actualmente num moderno e remodelado Hospital-Prisão.
Razões de ordem pessoal que não têm nada a ver com a instituição mas com alguém que lá trabalha, estiveram na origem desta inesperada visita relâmpago que durou cerca de 15 minutos.
O nosso "hotel" está mudado, está mais bonito. Todo pintadinho de fresco.
Mantêm-se as casernas antigas, mas foram acrescentados mais alguns edifícios funcionais.
O refeitório está no mesmo sitio ao lado do "comboio", onde estavam localizadas algumas das celas individuais, incluindo a famigerada cela 5 que era a solitária, a cela de castigo, onde estive por duas vezes a cumprir sanção disciplinar.
Na primeira ida para 5, lembro-me perfeitamente, foi por ter gritado depois de ter visto das grades da cela "Siga de Cima" a minha mãe, que pensava que eu já estava morto.
Sair da 5 e voltar para a caserna era um pouco como ganhar a liberdade sem deixar a cadeia.
Era um verdadeiro alívio....
A visita desta quinta-feira causou em mim uma sensação difícil de descrever. Foi na prisão de São Paulo que vivi os piores e mais angustiantes momentos da minha vida, pois na altura ninguém sabia se algum dia sairia dali com vida.
Mas também foi no São Paulo onde fiz as melhores e mais sólidas amizades que conservo até aos dias de hoje.
Foi no São Paulo onde aprendi a conhecer melhor os angolanos.
Os bons e os maus. Ainda andam quase todos por aí...
Foi no São Paulo e depois de toda aquela barbárie que fomos testemunhas, que decidi nunca mais voltar a militar em nenhum partido, seja ele qual for.