Quem vai “herdar” o novo património estatal?
Não está muito fácil perceber e definir o actual sistema económico de Angola, que um analista da nossa praça já comparou, com as devidas distâncias, ao “modo de produção asiático”*, descoberto há dois séculos por Karl Marx.
Aparentemente estamo-nos a afastar da iniciativa privada que, em princípio, é o principal motor de qualquer economia de mercado, por mais responsabilidades sociais que queiramos atribuir aos seus operadores.
As últimas notícias deixaram-nos algo confusos em relação ao provir, porque agora, paradoxalmente, até estão mais esclarecidas as intenções do Governo em relação ao seu papel no desenvolvimento da economia real do país.
Esclarecidas, salvo seja, porque ainda há muitas zonas cinzentas pela frente nesta abordagem que tem como eixo principal o papel do Estado na economia, tendo por balizas a sua maior ou menor intervenção, com o já conhecido debate à volta do que é melhor.
Quanto mais ou quanto menos Estado?
Quanto ao esclarecimento deste papel, os factos, já transformados em notícias, falam bem por si, projectando no ecrã gigante do país real um Estado cada vez mais empreendedor e interventivo, quer do ponto de vista da mobilização do investimento quer no que toca ao lançamento de novos projectos empresariais.
Depois de, no início da abertura (já lá vão mais de 15 anos), ter emitido alguns sinais de que se queria afastar paulatinamente do mercado, enquanto agente directo, o Governo angolano parece ter alterado completamente a anterior orientação estratégica, que se sucedeu ao completo fracasso da sua aventura centralizadora e socializante.
Certamente aconselhado (mal ou bem?) pelos cofres abarrotados de petro-dólares e pelas novas facilidades de crédito no mercado internacional, o Governo angolano está neste momento apostado em voltar a ser o principal motor da economia angolana a todos os níveis.
De alto a baixo, passando por todos os becos existentes no tecido económico-empresarial.
Em abono da verdade esta condição nunca esteve em causa, pois, como se sabe, as privatizações ficaram-se pelas pequenas e médias empresas, tendo o Estado conservado sob sua alçada o chamado “filé-mignon” do parque empresarial que “herdou” com a independência.
O que nos é dado a assistir nos últimos tempos é, efectivamente, um impressionante desfile de projectos grandes, médios e pequenos, onde o Estado surge a querer fazer tudo e mais alguma coisa, fora da área da reconstrução/reabilitação das infra-estruturas básicas e sociais.
Desde fábricas ao nível da indústria pesada até lojas de bairro, passando pela habitação, a agro-pecuária, as pescas e o turismo, temos actualmente o Estado angolano, quer directamente quer por intermédio do sector público empresarial, transformado no único mega-empresário do nosso incipiente mercado.
Mais concretamente sabe-se que no próximo ano Governo vai construir, por exemplo, quatro fábricas.
A notícia avançada esta semana pelo matutino diz tratarem-se de “fábricas de cimento, alumínio, geração de energia e de refinação para o sector petrolífero”. Ainda de acordo com a mesma fonte, “as referidas fábricas custarão centenas de milhões de dólares”.
Uma outra intervenção que traduz bem a nova febre governamental tem por palco o sector comercial.
Tendo em conta o nosso passado socializante do tão famoso quanto famigerado cartão de abastecimento, e quando se pensava que o ramo do comércio já estava mais ou menos bem encaminhado em termos de liberalização, no que toca ao modelo global da sua gestão, somos confrontados com o regresso em força do Estado aos circuitos comerciais.
Estamos certos que a maior parte dos analistas ainda não digeriu completamente a nova estratégia governamental subjacente a esta massiva intervenção do Estado no circuito comercial.
Como já é do domínio público o Governo anunciou a sua intenção de investir massivamente na rede comercial do país, com a edificação de uma complexa infra-estrutura do topo à base do circuito.
Este “regresso ao passado” será feito através Programa de Reestruturação do Sistema de Logística e de Distribuição de Produtos Essenciais à População (PRESILD).
Com o tamanho do Jumbo serão construídos 31 supermercados em todo o país, mais 10 mil estabelecimentos de retalho, oito centros de logística e distribuição e 163 mercados municipais urbanos, suburbanos e rurais.
Sem ter em conta a eventualidade das próximas eleições produzirem resultados diferentes do actual status quo, o PRESILD tem como horizonte temporal para a sua execução o ano de 2012 (!?).
Quantos milhões de dólares serão necessários para transformar em realidade este sonho que já terminou em pesadelo aquando da primeira experiência?
Os planos governamentais ainda não estão claros quanto ao destino que pretende dar ao novo património que está a ser edificado com o dinheiro que é de todos nós.
É bom que se note que assim é, apenas para não nos esquecermos da origem de toda esta apetência para o negócio que de facto está a ser feito com fundos públicos.
Neste contexto é absolutamente legítimo que as pessoas se interroguem sobre o destino que se pretende dar ao novo património, pois tudo leva a crer que há uma intenção de privatizar, tão logo seja possível.
Resta saber quando e como, sobretudo como é que o Estado pensa transferir para mãos de terceiros estes novos activos que todos os dias nascem aqui e acolá.
Eles são o resultado de uma estratégia cujos contornos ainda não são totalmente do domínio público, o que já deveria ter acontecido em nome da transparência que se exige a quem tem sob a sua responsabilidade a gestão do dinheiro que é de todos nós.
A preocupação com a transferência deste património tem a ver com o facto das novas capacidades que estão a ser edificadas neste processo acelerado de criação de riqueza, estarem a ser de imediato entregues a empresas privadas tendo em vista a sua gestão. Numa primeira fase, é claro. Depois logo se verá.
Assim aconteceu com os quatro mercados populares inaugurados em Luanda pelo Presidente JES em vésperas do 11 de Novembro.
É pois pertinente perguntar-se pelos critérios que estão a ser observados nesta escolha de parceiros privados.
É nossa convicção (e de mais alguém certamente) que, em princípio, deveria haver uma maior abertura neste processo, para se evitarem os já recorrentes reparos à existência das eternas clientelas e dos negócios que os governantes fazem com as suas próprias empresas.
*(O modo de produção asiático caracteriza-se, grosso modo, pela existência de um Estado centralizador que submete a sociedade aos seus interesses, seja em função de dificuldades impostas pela natureza, seja por conta do perigo sempre presente de invasões externas)