[Ponto Prévio: Não nos foi possível saber exactamente se alguma das televisões transmitiu imagens da "manifestação" contra o rapper Luaty Beirão que resultou numa agressão contra ele em sua própria casa. É, contudo, certo que para além do J.Angola, também a RNA fez a "reportagem" do infausto acontecimento que bem poderia ter tido um desfecho mais trágico.]
Muito recentemente, há pouco mais de uma semana, Luaty Beirão e David Mendes foram "visitados" em suas respectivas casas por um grupo ruidoso e agressivo de "manifestantes", supostamente preocupados com o resgate de uma dívida que os referidos cidadãos tinham contraído com eles.
A primeira vez que tomei contacto com esta informação foi através do Jornal de Angola, na sua edição de sexta-feira dia 3 de Junho.
Uma “notícia” colocada na última página do “nosso Pravda” com o título “Do Matafrakuxz- Jovens reclamam pagamento de dívida”, relatava os “factos” ocorridos na Vila-Alice onde vive Luaty Beirão, um rapper que se tem destacado entre os jovens que actualmente têm estado a organizar algumas manifestações de protesto em Luanda, no âmbito da “nova dinâmica que estamos com ela”.
Acabei por não ver a “cobertura” que a TPA fez da mesma “manifestação”, que foi seguida de uma acção idêntica um dia ou dois depois diante da casa do advogado, activista cívico e líder partidário, David Mendes.
Terá sido o mesmo grupo?
Pouco importa, pois o que há mais nesta cidade são jovens desocupados, extremamente violentos e com vontade de fazer qualquer coisa, a troco de umas birras.
Disseram-me que a TPA cobriu igualmente esta segunda “manifestação”, mas acabou por não a transmitir, porque foi prontamente contactada por alguém ligado a David Mendes com o propósito de exercer o direito ao contraditório. O “Pravda” também não fez “matéria”. Não conferi a ANGOP e não estou informado se as rádios pegaram ou não no assunto. É, contudo, bem provável que tenham feito qualquer coisa.
Soubemos das “dicas” da ofensiva contra David Mendes através da Emissora Católica de Angola onde segunda-feira passada o porta-voz do seu partido foi denunciar o carácter maquiavélico da “manifestação”.
Os propósitos da acção do "novo movimento social", que é claramente um produto de laboratório, estão à vista de todos e só podem deixar-nos preocupados, porque apontam claramente para o regresso a um passado que, em abono da verdade, nunca deixou de estar presente, embora (mal) disfarçado com as cores de um futuro diferente em que todos cremos acreditar.
Confirma-se assim a grande dificuldade que determinados “operadores do sistema” continuam a ter em lidar com algumas adversidades de carácter político, que inevitavelmente terão de surgir e que são absolutamente normais em regimes democráticos.
Em democracia os executivos nunca têm a vida “facilitada” pela população que quer sempre mais, melhor e mais barato. Esta é a regra.
Imagine-se Angola onde tudo rima com ausências e carências…
As dificuldades dos “operadores” não são, contudo, muito compreensíveis para quem teve uma aprovação eleitoral que ultrapassou os 82%, tendo neste momento nas suas falanges mais de 4 milhões de fervorosos militantes.
Espero que com estas referências menos simpáticas não ganhe, também eu, direito a ser brindado com uma “manifestação” do mesmo género. Pelos vistos a capacidade de mobilização é infinita tendo em conta a disponibilidade da já referida “matéria-prima” a par de outras facilidades ao nível do financiamento deste tipo de operação encoberta.
Desde que em 1995 foi organizada pelos seus próprios camaradas a manifestação "espontânea" contra o "bailundo" Marcolino Moco, que já nada me espanta nesta "secção das maldades".
Devo confessar, contudo, que fui surpreendido, depois do número dos panfletos truncados, por este novo “coelho” tirado de uma “cartola” que já parecia ter produzido praticamente todas as “magias” constantes do “manual”.
Claramente e conforme era nossa previsão, a violência física contra os "cabeças de lista" foi accionada na sequência das últimas movimentações de rua.
Resta apenas saber se haverá alguma limitação, ou seja, se as orientações do “manual” excluem a eliminação dos protagonistas, o que ainda parece ser o caso, pois não acreditamos que a violência sectária já tenha chegado (novamente) a um tal extremo.
Seja como for, a criação pelo parlamento da CPI sobre a intolerância política que está a fazer o levantamento da situação no Huambo traduz uma realidade sociopolítica que não é, certamente, a melhor em matéria de reconciliação e que nos ajuda a perceber as tendências mais tenebrosas do “mercado”, quando ano e meio nos separa da realização das próximas eleições gerais.
É bom salientar que o controle emocional dos “figurantes” nestes “projectos” nem sempre é muito fácil de executar, particularmente quando se instrumentalizam jovens com as características daqueles que estão a ser arregimentados para estas caçadas políticas.
É, claramente, brincar com o fogo…
Uma “brincadeira” que Luaty Beirão já começou a sentir no seu amachucado e dorido físico, com todas as pancadas que tem levado.
A partir de agora os "brigadistas" podem visitar todos os críticos do MPLA/Governo com o propósito de intimidá-los.
Depois destas primeiras duas desastrosas “experiências” temos alguma esperança que o “projecto” venha a ser abandonado como já aconteceu com outros parecidos.
O recurso ao "direito de manifestação" só superficialmente parece inteligente, porque muito dificilmente convencerá a opinião pública da sua autenticidade. É mais um caso típico da chamada "esperteza saloia", como diriam os nossos amigos portugueses.
O que me entristece profundamente em tudo isto, para além da violência gratuita, é termos, uma vez mais, a comunicação social pública e os seus "jornalistas" completamente atrelados a esta estratégia manipuladora e repressiva.
Os "jornalistas" estão a patrocinar o "projecto", sendo, aliás, responsáveis pela execução da sua parte mais sensível e perturbadora, considerando a existência nesta "cooperação" de graves violações da ética/deontologia profissional.
Só mesmo colocando-lhes algumas boas aspas em cima é possível entender o seu papelão em toda esta campanha de violência/intimidação política contra cidadãos descontentes, frustrados, enraivecidos, zangados com o Governo mas que não cometeram nenhum crime de lesa-pátria.
Não é possível que jornalistas sem aspas pudessem fazer a "cobertura" de tais actos, sem questionarem a sua autenticidade e a sua origem, contribuindo antes pelo contrário, para a sua legitimação, ao apresentá-los como sendo reacções naturais de cidadãos que têm o direito de exigir o pagamento de dívidas.
Preparem-se para o pior, pois nesta terra nada está tão mal que não possa ficar ainda pior, particularmente em matéria de violências para todos os gostos e feitios, começando pela já endémica violência institucional/violência política. Quando vi os nossos “jornalistas” a aderirem ao novo “projecto” lembrei-me de imediato de um filme que já vi há muito tempo nos anos 70 e que se chamava (continua a chamar-se) a “A Honra Perdida de Katharina Blum”, feito com base na obra do romancista alemão Heinrich Böll, galardoado com o Nobel da Literatura.
É um retrato de como o abuso de poder político e da mídia são capazes de destruir e desonrar a vida de uma pessoa inocente.
No livro e no filme a pobre e bela Katharina é destruída por um jornalista que trabalhava para o mais influente jornal da época da República Federal Alemã (RFA), o Bild Zeitung, apenas porque se tinha enamorado de um comunista que estava a ser perseguido pela polícia e que ela não sabia muito bem quem era. Aliás, não tinha a mínima noção de que se tinha apaixonado por um inimigo do regime.
O filme mostra-nos os pormenores de como o “jornalismo” manipulado funciona e como é que de facto a comunicação social pode deixar de ser um espaço de liberdade, informação e transparência para se transformar no seu oposto, sem perder a “credibilidade” aos olhos da opinião pública.
Na sequência de tudo quanto vi nos últimos dias na minha querida Luanda, estou a pensar em voltar a ver, mais de 30 anos depois, “A Honra Perdida de Katharina Blum”.
Vale a pena a ver de novo…