terça-feira, 20 de abril de 2010

Constituição angolana continua a fazer correr rios de tinta

O constitucionalista português, Jorge Miranda, foi convidado a emitir um parecer sobre a nova Constituição angolana.
Do parecer, com mais de 40 páginas, que chegou ao nosso conhecimento respigamos para aqui algumas passagens.
(...)
III – Já no domínio da Constituição política, vêm a ser outras as perspectivas. Ela gira toda em torno do Presidente da República. E não se trata tanto da acumulação das funções de Chefe de Estado e de Chefe do Executivo – que também conhecem os sistemas presidenciais – quanto da vastidão de poderes que lhe são atribuídos, muito para além do que se verifica nestes sistemas: – Definição e orientação da política do País [art. 120º, alíneas a) e b)]; – Promoção, graduação, despromoção e desgraduação de oficiais generais das Forças Armadas e dos oficiais comissários da Polícia Nacional [art. 122º, alíneas e) a h)]; – Definição, determinação e execução da segurança nacional (art. 123º); – Declaração de estado de sítio e de emergência, apenas com audição e análise a posteriori da Assembleia Nacional [arts. 119º, alínea p), 161º, alínea h), e 162º, alínea c)]; – Competência para emitir decretos legislativos presidenciais provisórios, ainda que com limites a priori e a posteriori (art. 126º); – Iniciativa de revisão constitucional (art. 223º). Ao que acresce a ausência de referenda ministerial, a qual poderia ser um freio a um exercício pessoal do poder[1]. O princípio da reserva de Constituição (art. 117º) ou de que o Presidente está confinado aos poderes previstos em normas constitucionais, perde todo o alcance prático[2]. Não é que não haja limites ou contrapesos: – A convocação de referendo apenas sob proposta da Assembleia Nacional [arts. 119º, alínea u), 161º, alínea j), e 168º]; – A sujeição a responsabilização criminal e a destituição por iniciativa da Assembleia [arts. 129º e 161º, alínea n)]; – A impossibilidade de eleição para terceiro mandato [arts. 110º, alínea h), e 113º, nº 2]; – O primado da competência legislativa da Assembleia Nacional (arts. 161º, 164º e 165º); – A iniciativa de fiscalização preventiva, de fiscalização sucessiva abstracta e de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão também atribuída a Deputados em determinado número [arts. 228º, nº 2, 230º, nº 2, alínea b), e 232º, nº 1]; – A impossibilidade de revisão constitucional em estado de guerra, de sítio ou de emergência (art. 237º). Estes limites ou contrapesos, entretanto, correm o risco de ser apagados pelos factores políticos ligados necessariamente: – À eleição do Presidente simultânea com a dos Deputados à Assembleia Nacional (art. 109º), o que faz dele, presidente e primeiro candidato do parido vencedor, o chefe da maioria parlamentar e lhe permite domínio total da Assembleia[3]; – À autodemissão política, não submetida ao regime de renúncia e que implica a dissolução automática da Assembleia (art. 128º)[4]. [1]Sobre referenda ministerial, v. nosso Manual …, V, 3ª ed., Coimbra, 2004, págs. 303 e segs,. e autores citados. [2]Há algumas semelhanças com a Constituição sul‑africana, por, nesta, o Presidente da República ser igualmente detentor do poder executivo (art. 83º) e por, não obstante não ter de aparecer como candidato a Deputado, ser eleito pelo Parlamento na sua primeira reunião (art. 86º). Contudo, são substancialmente menores os poderes do Presidente da África do Sul (arts. 84º e 85º); a Assembleia Nacional pode votar, pela maioria dos seus membros, moções de censura ao Presidente, determinando, por tal facto, a sua demissão (art. 102º); o Presidente só poder dissolver o Parlamento, se este assim deliberar ou, livremente, ma só passados três anos sobre a eleição do Parlamento (art. 50º, nº 1); e, em caso de vacatura do cargo, em vez do Vice‑Presidente o assumir até ao termo do mandato, o Presidente interino da República ter de dissolver o Parlamento, para permitir a eleição de um novo Presidente (art. 50º, nº 2). [3]Apenas assim não será se o partido do Presidente não alcançar a maioria absoluta dos mandatos, hipótese pouco provável no contexto presente e próximo de Angola. [4]O Tribunal Constitucional entendeu este mecanismo como “expediente último de segurança da estabilidade política da governação, quando o relacionamento institucional executivo‑legislativo enfrente uma crise insanável que se resolverá mediante a antecipação de eleições gerais, nas quais o povo, enquanto titular da soberania e através do seu voto, determinará o futuro da representação política”. E ele pode ter‑se outrossim como decorrente do sistema de eleição presidencial. Não menos certo é que, além de inexistir em sistemas presidenciais, ele conduz necessariamente a um sentido de reforço dos poderes do Presidente, por as eleições parlamentares virem a efectuar‑se sempre à volta dos candidatos à Presidência da República. Apenas ficticiamente se pode afirmar que o Presidente da República não tem, entre as suas competências, a de dissolução da Assembleia Nacional e que, portanto, não fica atingido o limite material de separação de poderes.
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IV – O sistema de governo angolano, não sendo, evidentemente, um sistema parlamentar, tão pouco se ajustaria ao modelo presidencial. Um sistema de governo presidencial caracteriza‑se, como se sabe, por: a) Presença de dois órgãos políticos activos, o Parlamento e o Presidente da República, com idêntica legitimidade representativa; b) Clara distinção entre poder legislativo e poder executivo; c) Independência recíproca dos titulares, com incompatibilidade de cargos, e, geralmente, com mandatos não‑coincidentes; d) Independência, sobretudo, por nem o Presidente responder politicamente perante o Parlamento, nem o Parlamento perante o Presidente; e) Donde, quer impossibilidade de demissão do Presidente por força de qualquer votação parlamentar, quer impossibilidade de dissolução do Parlamento pelo Presidente; f) Interdependência funcional, com mútua colaboração e fiscalização – na prática, tendo o Presidente faculdades de impulsão e o Parlamento faculdades de deliberação[1]. Salvo a primeira característica, nenhuma das outras se depara na Constituição de 2010. O sistema aproxima‑se, sim, do sistema de governo representativo simples[2], a que, configurações diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a república corporativa de Salazar segundo a Constituição de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituição de 1967‑1969, vários regimes autoritários africanos[3] [4]. [1]Cfr. Manual …, I, 8ª ed., Coimbra, 2009, págs. 145 e 146. A bibliografia é imensa. [2]Sobre o sistema de governo representativo simples no confronto de outros tipos de governo, v. Manual …, III, 5ª ed., Coimbra, 2004, págs. 396 e segs. [3]Cfr. Manual …, I, págs. 152, 301 e segs., 210‑211 e 221, e Autores citados. [4]Vital Moreira fala em presidencialismo superlativo em artigo no jornal Público de 9 de Fevereiro de 2010.
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17. Uma dúvida razoável A Constituição proclama o princípio da separação de poderes [arts. 2º, nº 1, 105º, nº 3, e 236º, alínea j), de novo]. Ora, as regras sobre os poderes do Presidente e sobre a sua eleição e a sua autodemissão afastam‑se deste princípio. Acarretam então este desvio como consequência que deva pensar‑se que, em vez de ter sido exercido o poder constituinte formal (nos moldes atrás indicados), ao fim e ao resto ter‑se‑á ostentado, em 2010, um novo e diferente poder constituinte material? A dúvida afigura‑se razoável. Mas, a despeito de tudo, pode supor‑se – e esperar‑se – que o enraizamento dos direitos e liberdades fundamentais, a dinâmica que vá desenvolver‑se no interior do Parlamento e a independência dos tribunais não permitam que a Constituição venha a tornar‑se uma mera Constituição semântica (na acepção de Karl Loewenstein), ou seja, uma Constituição, instrumento e não fundamento de poder[1]. É cedo para responder. Uma alternativa seria reputar aquelas normas inconstitucionais – mas só para quem aceite a tese de inconstitucionalidade de normas constitucionais. E restaria o problema de saber como poderia o Tribunal Constitucional, criado pela Constituição, controlar a constitucionalidade das suas normas[2].
[1]Cfr. Manual …, II, cit., págs. 17 e segs. e Autores citados. [2]Cfr. Manual …, VI, 3ª ed., Coimbra, 2008, págs. 31 e segs. e Autores citados. É também por isso que somente aceitamos a inconstitucionalidade de normas constitucionais supervenientes, derivadas de revisão constitucional ou de fenómenos próximos, e não a de normas constitucionais originárias.