A problemática que o
binómio deste painel encerra, “Informação versus Difamação” dificilmente algum
dia será resolvida a contento das partes, pois cada caso envolvendo este
conflito será sempre um caso a ser analisado de per si, por mais que nos aproximemos de um consenso em torno do
direito fundamental e estruturante do Estado Democrático que é a Liberdade de
Imprensa e de Expressão (artigos 32 e 35) no seu relacionamento com os direitos
de personalidade igualmente protegidos pela constituição no seu artigo 20º.
Enquanto a Liberdade de
Imprensa não pode estar sujeita a qualquer censura, nomeadamente de natureza
política, ideológica e artística,
os direitos de
personalidade são fortemente protegidos pelo Código Penal no seu capítulo
referente aos crimes contra a honra, que incluem a difamação, a calúnia e a
injúria.
Sendo para os leigos
quase a mesma coisa, estes três crimes têm, contudo, tipificações e molduras
diferentes que convergem, entretanto, para o mesmo objectivo que é o de impedir
a violação daquilo a que genericamente alguém definiu como sendo a nossa honra
que é “o conjunto de atributos morais, físicos e intelectuais de uma pessoa,
que a tornam merecedora de apreço no convívio social e que promovem a sua
auto-estima”.
A questão que, de uma
forma geral, todos os especialistas colocam na abordagem desta problemática tem
a ver com a preponderância ou não de um direito sobre o outro quando a
liberdade/expressão, que é de facto um direito fundamental, choca com o direito
ao bom nome/reputação de alguém que decide recorrer aos tribunais para fazer
valer a sua boa imagem, por mais desgastada que ela possa estar aos olhos da
opinião pública e publicada.
Neste confronto em que
a batata quente é atirada para as mãos dos juízes, as coisas complicam-se
bastante para o jornalismo e os jornalistas, pois a procura da verdade em nome
do interesse público, que tanto nos anima e atormenta, deixa de ser o critério
fundamental, uma vez que do outro lado da barricada, do lado da defesa da
honra, estão critérios absolutamente subjectivos mas que são igualmente tidos
como legais/ legítimos.
É este pelo menos, o
entendimento que o nosso ordenamento jurídico ainda tem desta problemática
quando, por exemplo, só à título excepcional, admite a prova da verdade dos factos
imputados num processo em que o jornalista é acusado de difamação.
Por outras palavras,
isto quer dizer que o jornalista se pode transformar rapidamente num criminoso
de delito comum, caso o juiz assim o entenda, apenas porque o queixoso se
sentiu ofendido com uma determinada referência menos simpática para com a sua
pessoa contida numa determinada matéria dada à estampa na imprensa.
Veremos mais adiante
como é se pode difamar alguém no espírito da lei em vigor.
Importa aqui referir
que alguns ordenamentos jurídicos e jurisprudências por este mundo afora já
terão resolvido a bem este contencioso ao adoptarem o principio de que a
verdade não pode ser ofensiva da honra de alguém e muito menos ser tida como
matéria para um crime passível de condenação a vários meses de prisão e ao
pagamento de pesadas multas que inviabilizam projectos e lançam no desemprego
dezenas, senão mesmo, centenas de trabalhadores.
Neste âmbito, a
Alemanha, onde prevalece a doutrina da prossecução de interesses legítimos que
dá um conteúdo mais sólido à própria liberdade de imprensa, parece-nos ser o
país que, ao nível da Europa, pelo que é do nosso conhecimento, melhor tem
procurado estabelecer um equilíbrio adequado entre a protecção da personalidade
e os direitos fundamentais da liberdade de expressão e de imprensa.
Parafrasearemos aqui o
jurista alemão Lenckner, para com ele concordarmos que “o que aqui está em
causa é a opção entre: fazer a imputação de um facto desonroso com o risco dele
não poder ser comprovado ou omiti-la e, por vias disso, pôr eventualmente em
perigo interesses legítimos. O interesse por uma protecção o mais compreensiva
possível da honra entra assim em colisão com o interesse de publicitar factos
que, numa consideração ex-ante, se
revestem de significado para a prossecução de quaisquer interesses legítimos”.
(1)
A jurisprudência alemã
respondeu a esta preocupação com um muito sério aviso à navegação dos
jornalistas e da comunicação social sem, contudo, pôr em causa o seu direito de
informar e o da sociedade de ser informada livremente.
Foi assim devidamente
valorizada a liberdade de imprensa como um direito estruturante do próprio
projecto democrático desde que em causa esteja o interesse público.
A lei angolana diz, por
exemplo, que a promoção da boa governação e a administração correcta da coisa
pública é um dos fins que a imprensa deve prosseguir no quadro do interesse
público que a doutrina alemã considera serem os interesses legítimos.
Tais interesses têm de estar
suficientemente bem vincados para se evitarem as confusões com outras
motivações mais pessoais ou de grupo que, lamentavelmente, continuam a
alimentar a imprensa com um jornalismo de muito duvidosa qualidade, onde a
devassa, a intriga, as acusações gratuitas, a desinformação, a intoxicação e a
má-fé ainda são notas mais do que dominantes.
“ Quem, para a prossecução de interesses
legítimos quiser fazer imputações de factos susceptíveis de ferir a honra de
outrem tem antes de se informar conscienciosamente sobre se estes factos são
verdadeiros”.
“O jornalista só deve
arriscar a notícia que atenta contra a honra de outrem depois de comprovar
cuidadosamente a fiabilidade das suas fontes”.
Estas são apenas
algumas das muitas referências que povoam os textos da jurisprudência alemã e
que, certamente, nos ajudam a perceber como é que a honra é tratada naquele
país quando a liberdade de informar entra em choque aberto com os direitos de
personalidade.
Nesta apreciação do que
se passa além-fronteiras, talvez seja interessante referir que o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem tem feito pender a balança no sentido do
predomínio da liberdade de expressão.
Em instância de último recurso, o Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem (2) tem sido frequentemente chamado a dirimir situações de conflito entre
a liberdade de expressão e o direito à honra e à reputação, nomeadamente, de
políticos, outras pessoas com notoriedade social e instituições.
Contrariamente
às jurisdições nacionais, mais comprometidas com a defesa destes valores, o
Tribunal Europeu tem feito pender a balança no sentido do predomínio da
liberdade de expressão.
Pode ler-se
num dos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que “a liberdade de
expressão vale não somente para as "informações" ou
"ideias" favoráveis, inofensivas ou indiferentes mas também para
aquelas que ofendem, chocam ou inquietam.
Esses princípios, prossegue o acórdão, “assumem particular importância no domínio da imprensa. Se ela não deve ultrapassar os limites fixados em vista, nomeadamente, da protecção da reputação de outrem, incumbe-lhe, contudo, transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral”.
Esses princípios, prossegue o acórdão, “assumem particular importância no domínio da imprensa. Se ela não deve ultrapassar os limites fixados em vista, nomeadamente, da protecção da reputação de outrem, incumbe-lhe, contudo, transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral”.
No exercício da sua
profissão tendo como principal ferramenta a liberdade de imprensa que se traduz
no direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos,
nem discriminações, o jornalista está entre nós diariamente confrontado com os
limites resultantes da interpretação dos crimes contra a honra, sendo, sem
dúvidas, o mais movediço deles o crime de difamação.
Movediço porque
absolutamente subjectivo, não carecendo de qualquer prova material, pois basta
a intenção ou a sua ausência, o denominado “animus difamandi”, para se ser
condenado ou inocentado.
O crime de difamação
será assim, possivelmente, aquele que mais choca com o direito fundamental que
é a liberdade de imprensa/expressão, pois basta o juiz ser convencido pelo
advogado da acusação que o jornalista teve a intenção de magoar o seu cliente,
mesmo com a verdade dos factos, para tudo se complicar.
Como agravante, algo
paradoxal, somos confrontados com a situação de, no exercício de um direito
fundamental, o jornalista correr o sério risco de perder um outro ainda mais
fundamental que é a sua própria liberdade.
Nas condições
impróprias para o consumo humano que caracterizam o nosso universo carcerário,
a perda de liberdade pode significar na prática uma penalização ainda mais
severa que ameaçará, inclusivamente, a integridade física do condenado.
Os crimes contra a
honra ou os direitos de personalidade foram parcialmente transferidos para a
Lei de Imprensa onde são considerados crimes de abuso da liberdade de imprensa
o que quer dizer que não houve qualquer evolução nem alteração na abordagem
desta problemática mais específica que tem a ver com a descriminalização dos
alegados excessos que se cometem no exercício da liberdade de imprensa e de
expressão.
A ideia que muitos de
nós defendemos neste debate aponta efectivamente para a substituição da tutela
penal pela responsabilidade civil e disciplinar, numa altura em que a classe
continua a não possuir nenhum mecanismo de auto-regulação, o que é
absolutamente lamentável e em muito tem contribuído para o mau jornalismo que
se faz entre nós.
Penso que, por exemplo,
a retirada temporária ou mesmo definitiva da carteira profissional a um
reincidente jornalista em actuações lesivas da ética e da deontologia, teria um
impacto muito mais positivo na melhoria do nosso produto final do que o seu
envio para uma cadeia infecta.
Para darmos rapidamente a esta plateia uma
ideia sobre como é que estes três legítimos obstáculos à liberdade de
impressa/expressão se apresentam no nosso ordenamento jurídico diremos que a
difamação consiste em imputar um facto ofensivo a honra e consideração de
alguém ou reproduzindo a imputação. Na difamação para se ser condenado basta
apenas escrever-se ou dizer-se que alguém foi trabalhar embriagado, enquanto que,
na calúnia, para além da imputação do facto supostamente ofensivo, o mesmo tem
de ser qualificado como crime e ser comprovada a sua falsidade.
Não basta pois dizer que alguém é bêbado mesmo que o seja pois a bebedeira em Angola não é um crime, não havendo por conseguinte lugar para a calúnia, ficando apenas de pé a difamação.
Não basta pois dizer que alguém é bêbado mesmo que o seja pois a bebedeira em Angola não é um crime, não havendo por conseguinte lugar para a calúnia, ficando apenas de pé a difamação.
Na injúria o crime contra honra consuma-se com
a atribuição ao queixoso de uma qualidade negativa, como por exemplo, dizer-se
ou escrever-se que alguém é um perfeito idiota, o que como se sabe é um recurso
que se utiliza muito no debate político, quando por exemplo temos diante de nós
alguém que acha que o nazismo até foi uma bênção para a humanidade pelo
tratamento que deu aos judeus.
Neste caso a suposta
ofensa a honra do queixoso por difamação ou injúria deve ser entendida como
sendo absolutamente legítima do ponto de vista do exercício de um direito
superior àquele que protege a personalidade, que é a liberdade de expressão,
sem o qual o debate político contraditório e acalorado inerente a qualquer
projecto democrático deixaria de ter qualquer respaldo. Na calúnia e na
difamação tem que haver testemunhas da ofensa, isto é, o crime só se consuma
mediante conhecimento de terceiros, enquanto que na injuria basta o
conhecimento do facto pelo injuriado.
Na difamação que parece ser o crime mais “utilizado”, o nosso código admite a prova sobre a verdade dos factos quando os queixosos são funcionários públicos no exercício das suas funções, entendendo-se esta condição como sendo extensiva aos membros responsáveis de qualquer corporação que exerça autoridade pública. Admite-se ainda esta prova nos crimes de difamação, se o facto imputado for de índole criminosa sobre que houver condenação ainda não cumprida ou acusação pendente em juízo.
Na difamação que parece ser o crime mais “utilizado”, o nosso código admite a prova sobre a verdade dos factos quando os queixosos são funcionários públicos no exercício das suas funções, entendendo-se esta condição como sendo extensiva aos membros responsáveis de qualquer corporação que exerça autoridade pública. Admite-se ainda esta prova nos crimes de difamação, se o facto imputado for de índole criminosa sobre que houver condenação ainda não cumprida ou acusação pendente em juízo.
De notar que
actualmente, quer o Código Penal quer a Lei de imprensa já não contêm qualquer
disposição especial de protecção à figura do Chefe de Estado ou seu homólogo
estrangeiro, como acontecia no passado, sendo assim permitida a apresentação da
prova dos factos imputados em caso de um processo difamação desencadeado pelo
Presidente da República.
Restam, no entanto,
segundo faz notar uma avaliação da nova lei de imprensa produzida pela Human
Rights Watch (HRW), várias provisões do Código Penal que fornecem maior protecção
contra a difamação e a injúria às personalidades públicas do que aos cidadãos
comuns.
O artigo 114 estabelece
que as penas para os crimes de difamação serão aplicadas a qualquer acto que
ofenda a consideração devida a uma autoridade pública. O artigo 181 também
prevê prisão de um ano para qualquer pessoa que ofenda, através de palavras,
ameaças ou actos, várias autoridades públicas, inclusive ministros,
conselheiros de estado, membros do parlamento ou comandantes da força pública.
Essas disposições, na
opinião do estudo realizado pela HRW, são contrárias ao princípio bem
estabelecido em direito internacional segundo o qual a “média” deve ser
especialmente protegida pela lei quando cobrindo assuntos de interesse público
e segundo o qual políticos e outras figuras públicas devem tolerar maior nível
de escrutínio e possíveis críticas.
Tanto a Corte Europeia de Direitos Humanos quanto a Comissão Inter-Americana sobre Direitos Humanos reafirmaram esses princípios em sua jurisprudência, conforme, aliás, já foi aqui referido.
Tanto a Corte Europeia de Direitos Humanos quanto a Comissão Inter-Americana sobre Direitos Humanos reafirmaram esses princípios em sua jurisprudência, conforme, aliás, já foi aqui referido.
Se nos fosse permitido
fazer algumas sugestões à guisa de conclusão sobre esta relação potencialmente
conflituosa entre a liberdade de informar e o direito ao bom-nome de quem,
eventualmente, achar que foi difamado na imprensa, aconselharíamos o poder
judicial a tentar equacionar da melhor forma a importância dos interesses em
disputa, partindo do principio que existe uma certa hierarquia entre diferentes
direitos e que a existência do “animus difamandi” tanto condena, como a sua
ausência absolve.
Ao dizer que um
determinado político bebe mais do que a conta das suas responsabilidades
sociais permite, a intenção do jornalista, mesmo sem ter comprovado devidamente
o facto, poderá ter muito mais a ver com a defesa de um bem público que é a qualidade
da própria governação do que com algum ataque mais pessoal e gratuito visando
dar cabo da carreira profissional e do prestígio social do visado.
Afinal de contas os políticos, sobretudo quando estão no poder, devem dar o exemplo.
Afinal de contas os políticos, sobretudo quando estão no poder, devem dar o exemplo.
Aos homens da comunicação
social aconselharíamos a serem mais profissionais no sentido do respeito pelas
normas mais elementares do jornalismo, sobretudo quando estão em causa
situações de conflito, evitando a manipulação das fontes e a lei do menor
esforço.
Muitas situações
embaraçosas que os jornalistas têm enfrentado nos tribunais seriam facilmente
evitáveis se, antes de publicarmos uma determinada matéria, tivessem tido o
cuidado de procurar falar com todos os protagonistas.
A linguagem defeituosa,
onde a adjectivação desnecessária sobressai como a estrela de um espectáculo
que acaba por não acrescentar nada à informação que se pretende veicular, é
nesta altura um dos pequenos/grandes vícios do nosso jornalismo, responsável
por muitos ataques à honra de terceiros.
Resta-nos aconselhar os
jornalistas a agirem sempre de boa-fé, como intermediários, operadores ou
gestores e nunca como parte activa dos factos, partindo do principio que
ninguém é culpado de nenhum crime até o seu processo ter transitado em julgado,
um outro direito constitucional, o da presunção da inocência, que tem de facto
sido muito mal tratado pela imprensa em todo o lado.