terça-feira, 9 de junho de 2009
Debate Constitucional: O Cidadão é a grande pessoa de bem
Ponto prévio: O Estado é o território, a população e as instituições públicas (Parlamento, Governo e Tribunais).
O cidadão saído da população é por isso um elemento constitutivo do Estado que deveria ser tido e achado em pé de igualdade nos assuntos do Estado, mas acaba sempre por ser esquecido quando não engolido mesmo pelos outros cidadãos seus irmãos (?!?) que estão nas instituições por força das escolhas, das imposições ou das manipulações políticas.
Temos assim, por um lado, os cidadãos (população) que não pertencem ao Estado propriamente dito que é o das instituições e que são a esmagadora maioria.
Por outro lado, temos os outros cidadãos que são funcionários do Estado (não confundir com os pobres funcionários públicos) e que são a minoria.
O Estado que mais nos preocupa é o estado de espírito nervoso e exaltado que anima esta minoria que julga ser a proprietária do país, sempre em nome do Estado. Mais grave do que isso age em conformidade com uma tal suposição.
1-A primeira constituição da República de Angola a ser aprovada por uma assembleia legitimamente eleita pelos angolanos, esperemos que ainda este ano, deverá colocar os direitos, as liberdades e as garantias fundamentais dos cidadãos bem no centro das suas atenções, com o correspondente capítulo (que é o primeiro) a traduzir na medida exacta, e a mais concreta possível, a sua importância e relevância.
Recomenda-se mesmo um tratamento axiomático a esta matéria.
Este capítulo, por razões óbvias, parece-nos ser aquele que tem as melhores possibilidades de reunir rapidamente o maior consenso entre as diferentes forças políticas e a sociedade civil.
Afinal de contas, antes de sermos deste ou daquele partido, desta ou daquela igreja, deste ou daquele clube, desta ou daquela província, somos cidadãos angolanos.
Todos estamos interessados em defender a nossa cidadania de qualquer ataque, venha ele de onde vier.
Por tal razão deveremos todos pugnar por uma constituição onde os direitos da cidadania venham a merecer o tratamento mais adequado em conformidade com a carta mãe destes direitos que é a famosa, mas tão esquecida, Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Sabemos, porém, que há uns angolanos muito especiais que não gostam de ouvir falar e muito menos de discutir esta problemática, porque acham que muito dificilmente o poder em Angola algum dia irá mudar de cor politico-partidária.
Como têm esta perspectiva da história, tendo como paradigma o que se passou no século passado durante mais de 70 anos no México, consideram a ampliação e aprofundamento dos direitos dos cidadãos como uma inaceitável partilha do poder que desejam gerir no futuro de uma forma cada vez mais absoluta e eficaz. A eficácia em seu entender só pode ser conseguida com uma voz de comando única, o que pressupõe um pensamento único, de preferência com a ausência completa de notas dissonantes.
Acham por isso que os cidadãos, que só atrapalham, sobretudo quando começam a falar em sociedade civil e de outras matérias conexas, devem voltar para a população e lá permanecerem como referências estatísticas bem quietinhos sem fazer muitas ondas.
É pois contra este acantonamento que a nova constituição deverá lutar, tendo como meta o alcance de um amplo consenso em torno do papel central do cidadão como a grande e única pessoa realmente de bem na vida do país.
2-O Estado das instituições vem depois, mas apenas na condição de se portar bem, pois sabemos que esta pessoa abstracta é cada vez mais suspeita aos olhos dos cidadãos oriundos da população de condutas indecorosas, como resultado de comportamentos e interesses nada condizentes com a função que desempenham por parte de alguns dos seus principais inquilinos.
De uma forma geral os ante-projectos de constituição que já foram divulgados, com destaque para a do MPLA, parecem reflectir esta necessidade, o que é animador para quem partilha das nossas preocupações em relação ao papel dos cidadãos.
Tendo em conta a nossa realidade e experiência políticas, sou daqueles que defende a necessidade de ficar bem claro no texto da constituição, como uma espécie de grande direito imperativo, que o exercício dos direitos fundamentais não pode em circunstância alguma ficar dependente ou condicionado pela aprovação da lei ordinária.
Os direitos são para ser exercidos com ou sem regulamento. Os cidadãos não podem ser penalizados pelas omissões.
É o caso por exemplo do direito do habeas corpus contra as detenções ilegais, que figura na actual constituição e que anda há mais de 16 anos para ser regulamentado.
Pergunto-me quantas vezes neste país os juízes se terão pronunciado sobre um pedido de habeas corpus?
A aplicação da constituição que é a mãe de todas as leis não pode ficar a espera dos filhos ordinários e por vezes muito mal criados, que é o que tem vindo a acontecer.
Os cidadãos deveriam ter direito a mover processos de verificação da constitucionalidade das leis ordinárias, o que deveria começar logo após a aprovação do novo texto, tendo em conta a existência no nosso ordenamento de uma série de “minas e armadilhas”, começando pela actual e absurda Lei das Associações.
Depois do interior do país, a prioridade da “desminagem” deveria ser deslocada para os campos do nosso ordenamento jurídico.
Os juízes, também de acordo com o que achamos que deveria ficar definido na constituição como um princípio fundamental da nossa jurisprudência, deveriam pronunciar-se sempre de acordo com o que está plasmado na constituição.
Refiro-me, nomeadamente, ao princípio da harmonização (subordinação) da lei angolana com o que reza o direito internacional que é uma das garantias fundamentais em relação ao efectivo respeito dos direitos constitucionais e da sua protecção no tocante às interpretações de conveniência dos nossos causídicos de serviço sempre prontos a fazer o frete.
3-No seu ante-projecto, o MPLA sobre esta necessidade defende que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e os tratados internacionais sobre a matéria, ratificados pela República de Angola”.
Mais do que isso os “camaradas” sustentam na sua proposta que “na apreciação de litígios pelos tribunais angolanos relativos a matéria sobre direitos fundamentais, aplicam-se os instrumentos internacionais referidos no número anterior, ainda que não sejam invocados pelas partes”.
O artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos choca frontalmente com as restrições da lei de imprensa em relação à utilização das ondas hertzianas.
É por aí que eu começaria a proposta “desminagem” do nosso ordenamento jurídico.