terça-feira, 30 de junho de 2009
Na televisão (e não só) todos podem ser jornalistas
Ponto prévio: Sou um dos primeiros jornalistas angolanos do pós-independência a possuir um título profissional (diploma) com validade internacional, que me foi passado nos idos de 76 pela então Organização Internacional de Jornalistas (OIJ) sedeada em Praga, na sequência do primeiro curso de formação intensiva de jornalismo que profissionais deste país frequentaram no exterior, mais exactamente na já extinta Alemanha comunista, na Escola de Solidariedade da União dos Jornalistas da RDA, afecta ao Instituto Internacional de Jornalismo de Berlim.
Este ponto prévio para além da sua importância como registo histórico, destina-se a esclarecer algumas dúvidas que têm sido alimentadas por alguns “colegas” que, provenientes das mais estranhas paragens, foram alguns anos depois surgindo no nosso meio como pára-quedistas armados em chico-espertos.
De uma forma geral todos os profissionais genuínos do meu tempo fizeram a sua formação no exterior. Depois do pioneiro curso da RDA, lembro-me que tiveram lugar idênticas acções formativas na Bulgária, Argélia, Jugoslávia e Cuba. Terá havido, possivelmente, outras iniciativas, antes de ter surgido em Luanda o primeiro curso médio de jornalismo, já em meados dos anos 80.
Do ponto vista legal e como profissão, o jornalismo só passará a existir neste país quando for criada a prevista Comissão da Carteira e Ética, cuja principal função será a emissão da correspondente carteira profissional.
Na ausência desta Comissão, por obra e graça do monumental atraso que conhece a regulamentação da Lei de Imprensa, em princípio todos podemos ser jornalistas, desde que assim o queiramos, nos apresentemos como tal, ou ainda uma qualquer entidade empregadora assim o decida.
É o que está a acontecer nesta altura e neste país, particularmente na televisão onde todos os dias vemos surgir novos “jornalistas” oriundos particularmente dos mais diferentes palcos e passarelles.
Temos assim jornalistas “fabricados” nos palcos da música, da comédia, da moda, da beleza e da devassidão.
Antigos e novos músicos, comediantes, misses e artistas de teatro e telenovela têm estado a ser transformados em jornalistas de todo o terreno, desde que para tal lhes seja dado um microfone, uma câmara e um tempo de antena.
Curiosamente, tarimbados profissionais do audiovisual têm estado a ser preteridos a favor de novas “estrelas” que não conseguem dizer uma frase de improviso em directo sem se enganarem. Sobra-lhes uma carinha bonita.
Estando o território deserto do ponto de vista da regulação e da auto-regulação, e conhecendo nós o horror que a natureza tem do vazio, era normal que esta verdadeira “invasão de marcianos” viesse a acontecer no nosso planeta. Nada temos de pessoal contra os novos “colegas”, que também não têm culpa nenhuma do que lhes está a acontecer da noite para o dia.
Antigamente, é bom que se note, as coisas embora menos confusas, também não eram muito melhores, pois o cartão da velhinha UJA servia até para se “promoverem” motoristas. Isto para não falar de todos os outros “infiltrados” que a segurança de estado introduzia no sector com funções de controlo muito específicas no quadro da defesa da “ditadura democrática revolucionária”.
Escrevi aqui em Janeiro, quando avancei com as minhas profecias para o novo ano, que a nível mediático nada nos garantia que este ano viéssemos a ter, finalmente, a Lei de Imprensa complementada e regulamentada nos seus aspectos fundamentais, que são mais do que muitos.
Vamos continuar, vaticinei, a ter o Estado de Direito refém do poder discricionário do Governo do MPLA, particularmente na gestão de bens públicos do sector com destaque para a emissão de licenças para o exercício da actividade de radiodifusão e de radiotelevisão.
Os jornalistas vão continuar a desenvolver a sua actividade de forma ilegal por falta de uma carteira profissional que os habilite a desempenhar o seu métier adequadamente, sem se confundirem com o resto do pagode.
A confusão entre todos os actores que se movimentam no espaço da comunicação social vai ser ainda maior, deixando de haver qualquer tipo de fronteiras entre o jornalismo, a animação (show), a propaganda, a publicidade e as artes cénicas.
Vai ser bonito ver todo o mundo a fazer caretas e a declamar o verbo YES MAN!
Seis meses depois de ter produzido esta dramática peça futurista, o pior ainda parece estar para acontecer, sobretudo depois dos últimos acontecimentos à volta do episódio das incompatibilidades e dos conflitos de interesses ao qual se pode juntar o espectacular caderno reivindicativo dos jornalistas de Benguela que agora querem transitar para as administrações municipais como prémio de jogo pelo serviço prestado ao MPLA durante as últimas eleições.
Diante de tudo isto e de muito mais, não há dúvidas que algo anda muito nebuloso por estas bandas, sendo mais do que urgente a aprovação do novo Estatuto do Jornalista, que é o instrumento que define, entre outros aspectos, quem é jornalista, o regime de incompatibilidades, as condições de emissão, renovação, suspensão e cassação da carteira profissional do jornalista.
Enquanto este instrumento (Estatuto) e esta instituição (Comissão da Carteira) não saírem da penumbra das intenções, que é o que continua a ser a Lei de Imprensa, vamos de facto ter o nosso panorama mediático mergulhado na maior das bagunças, que é o que na verdade interessa a muito boa gente, que navega melhor em águas turvas.
Na comunicação social, com destaque para a Televisão, o entretenimento e o jornalismo são vizinhos, mas não se devem confundir porque têm códigos deontológicos e lógicas diferentes particularmente no seu relacionamento com a verdade dos factos e na equidistância que devem observar quando estão diante dos protagonistas dos acontecimentos.
Um programa informativo é diferente de um programa de animação, embora nos dois haja entrevistadores e entrevistados.
O apresentador de telejornal (pivot) é nas grandes cadeias televisivas, o jornalista mais bem preparado da estação, com capacidade e back-ground suficientes para fazer face a todas as situações previstas e imprevistas. Fazer caretas e dizer umas piadas não chega.
Nos tempos que correm e com as novas tendências para a informação-espectáculo, nem sempre é muito fácil separar estas águas, mas continua a ser o grande desafio do chamado jornalismo de referência, marcar algumas diferenças que são essenciais.
Em Angola, lamentavelmente, nós estamos muito no princípio, pois nem sequer ainda temos estabelecida uma fronteira mínima entre os diferentes protagonistas que se movimentam na comunicação social.
Vamos continuar assim até quando?
PS-Em Portugal, de onde os nossos “jurisconsultos” continuam a importar toda a sua “sabedoria” para o nosso ordenamento jurídico, o Estatuto do Jornalista está consagrado na Lei n.º 1/99 de 13 de Janeiro. No artigo 1º do Capítulo I, define-se o Jornalista como sendo “aquele que, como ocupação principal, permanente e remunerada, exerce funções de pesquisa, recolha, selecção e tratamentos de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados à divulgação informativa pela imprensa, por agência noticiosa, pela rádio, pela televisão ou por outra forma de difusão electrónica”. No n.º 2 do mesmo artigo refere-se que não constitui actividade jornalística, “o exercício de funções referidas no número anterior, quando desempenhadas ao serviço de publicações de natureza predominantemente promocional, ou cujo objectivo específico consista em divulgar, publicar ou, por qualquer forma, dar a conhecer instituições, empresas, produtos ou serviços, segundo critérios de oportunidade comercial ou industrial”.
Esta é apenas uma das várias diferenças existentes entre o jornalismo e tudo o resto com quem nos cruzamos no mesmo espaço comunicacional.