Este ano não teremos o que seria a 6ª edição do “Almoço Evocativo do 27 de Maio” por razões que têm a ver apenas com questões de ordem logística relacionadas com o aluguer do espaço e com alguma indisponibilidade de ordem mais pessoal da parte dos dois organizadores do projecto.
Lamentavelmente, as duas razões conjugaram-se e produziram este resultado pouco animador para todos nós que já nos estavam a habituar a este encontro anual, como fazendo parte da nossa rotina.
Trata-se de uma reunião de confraternização dedicada à memória, à amizade e à solidariedade, como sendo a grande homenagem que nos comprometemos a prestar aos milhares de jovens angolanos que foram forçados a desaparecer do mundo dos vivos no âmbito de uma fria estratégia de eliminação física dos adversários, que há 33 anos foi patrocinada e executada de forma implacável pelo Governo do MPLA.
Não se trata, entretanto, de colocar um ponto final na iniciativa, mas apenas de observar uma pausa forçada por uma determinada conjuntura, que deve ser entendida exclusivamente dentro das balizas aqui referidas, porque efectivamente não houve outras.
Para além de outras iniciativas do género que podem vir a preencher este ano o vazio do “Almoço Evocativo”, sabemos que haverá na próxima quinta-feira uma oportunidade para estarmos todos juntos e para assinalarmos o 27 de Maio de 1977, no dia 27 de Maio de 2010.
Esta oportunidade ser-nos-á dada pelo lançamento nas instalações da Liga Nacional Africana a partir das 15 horas, de um novo livro sobre a trágica efeméride, da autoria do Miguel Francisco (Michel).
O autor, um antigo “fapla”, já nos tinha brindado há 3 anos (2007) com a “Nuvem Negra- O drama do 27 de Maio”, um relato inédito na primeira pessoa da sua terrível experiência como prisioneiro do campo de concentração/extermínio da Calunda, no Moxico.
Michel entrou para a história por ter sido o primeiro autóctone a lançar em Angola um livro sobre o sangrento Maio da nossa desgraçada trajectória nacional, onde a data tem as “honras” de ter sido o maior massacre político do pós-independência, sem rivais em África.
Desta vez o Michel no seu “ANGOLA- O RACISMO COMO CERNE DA TRAGÉDIA DE 27 DE MAIO DE 1977” oferece-nos uma “REFLEXÃO” que tem a pretensão de contribuir para o aprofundamento do debate à volta das reais motivações que conduziram ao conhecido desfecho.
Nesta altura em que escrevo este texto e apesar de ainda não ter concluído a leitura da sua “Reflexão”, conhecedor que sou da visão que o Michel tem vindo a defender noutros fóruns, não posso partilhar das suas conclusões, embora esteja de acordo com muitas das observações que povoam o seu pertinente e oportuno texto.
Antes de me preocupar com a “estatística racial” dos protagonistas de um lado e do outro, continuo a pensar que do lado da gigantesca repressão estiveram angolanos de todas as cores, raças e feitios que levaram a sua intolerância política e raiva pessoal/afectiva até ao limite, com as consequências catastróficas que se conhecem.
Do lado dos reprimidos estiveram igualmente presentes todas as cores, raças e feitios. Curiosamente o conflito nasceu, cresceu e explodiu dentro de uma mesma e ampla organização dividindo-a profundamente em duas ou mais alas.
Claramente para mim, a estratégia muito em voga na época, decalcada dos manuais estalinistas, foi a da eliminação física dos adversários políticos no seio do mesmo partido: os reais, os suspeitos, os potenciais e os futuros.
No caso angolano admito a pertinência de todas as leituras “raciais” que se possam fazer, que eu entendo, compreendo perfeitamente e até posso aceitar parcialmente, mas não elejo como sendo as fundamentais para perceber o que se passou e muito menos para responsabilizar os tais verdadeiros instigadores.
A chamada “eliminação física dos camaradas” no antigo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) nos tempos de Joseph Staline ultrapassou largamente a nossa em termos numéricos e não teve qualquer motivação racial evidente.
Acho mesmo que esta incursão pelo domínio da “estatística racial” para além de não ter suporte objectivo, acaba por ser desculpabilizadora da maior parte de todos aqueles que instigaram e estiveram do lado da repressão, onde eu só vejo angolanos mais claros ou mais escuros, mais ou menos radicais, mais ou menos violentos, mas todos ferrenhos do mesmo e único CLUBE e com o mesmo e intolerante exterminador propósito.
Nunca, como depois do que aconteceu no 27 de Maio de 1977, estive tão de acordo com a máxima segundo a qual o homem é o principal lobo da sua espécie, “Homo hominis lúpus”, o homem é o lobo do homem.
Acho mesmo que com tal “estatística”, no limite, se pode estar a querer passar um atestado de menoridade ou de inimputabilidade para os restantes participes do sangrento regabofe, o que é mau para a história e para quem quer deixar registada a sua memória.
Com todo o respeito que nos merecem todas as opiniões que se afastam desta, estou hoje, como sempre estive, mais preocupado em homenagear todas as vítimas do monumental banho de sangue e esperar, que um dias destes, elas sejam também homenageadas pelo Estado angolano no panteão da reconciliação, do perdão e da justiça.
Apesar de já terem passados mais de trinta anos, sei que este dia ainda está longe e talvez não viva o tempo suficiente para a ver o Estado angolano reparar todas as injustiças e brutalidades cometidas e erguer um monumento em honra de todas as vítimas da intolerância que foram trucidadas na sequência da caça às bruxas que se seguiu ao 27 de Maio de 1977.
Mas tenho a certeza, que um dia esta reparação será feita e que este monumento vai fazer parte da nossa paisagem institucional.
Até lá vamos ficando por aqui, pelas colunas da imprensa, pelas palavras dos livros e pelos espaços dos almoços e de outras iniciativas convergentes, destacando anualmente a tragédia que foi o 27 de Maio de 1977, com os olhos postos no futuro, mas com os pés bem assentes no presente, para não nos esquecermos do passado, sob pena de repeti-lo.
Não é muito, mas é o que se pode fazer.