O parlamento vai reunir-se hoje plenária para aprovar na especialidade (já o fez na generalidade) o chamado “pacote das TICs”, integrado por três projectos de lei distintos mas que se complementam mutuamente, a saber: Lei das Comunicações Electrónicas e dos Serviços da Sociedade de Informação (lei-quadro), Lei da Protecção de Dados Pessoais e Lei de Combate à Criminalidade no Domínio das Tecnologias de Informação e Comunicação e nos Serviços da Sociedade de Informação.
Com este pacote, o Executivo de acordo com a justificação oficial pretende dar “um primeiro passo, no sentido da criação de uma legislação que contemple a protecção jurídica de matérias como o comércio electrónico, os documentos electrónicos e a assinatura digital, a protecção jurídica de dados pessoais, a protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, a protecção jurídica de programas de computador, a protecção jurídica de bases de dados e a criminalidade informática”.
Apesar de ter havido uma consulta pública deste pacote, a fazer fé na informação avançada pelo promotor do pacote, o Ministério das Telecomunicações e Tecnologias de Informação (MTTI), o que é facto é que ela parece ter sido muito discreta, não tendo havido sequer notícia dos seus resultados.
Com efeito, terão sido muito poucas as pessoas interessadas no assunto que fizeram a sua apreciação e deram o seu contributo por razões que já não adianta aqui tentar perceber. O próprio deputado João Melo manifestou desconhecimento em relação a esta consulta, ao referir há duas semanas na crónica que escreveu para o NJ que o “diploma carecia, pois, de uma ampla discussão pública, antes mesmo de ser levado ao Conselho de Ministros e à Assembleia Nacional, tal como já sucedeu, felizmente, com outras leis”.
Os jornalistas, parte obviamente interessada no dossier, considerando a extraordinária importância das TIC/Sociedade dos Serviços de Informação para a sua actividade profissional, foram assim apanhados “com as calças na mão”, como soe dizer-se, quando se aperceberam que a “procissão já tinha saído do adro”.
“In extremis” ainda houve, entretanto, tempo para aconselhar a bancada parlamentar do MPLA a procurar reflectir um pouco mais demoradamente sobre o conteúdo do pacote, na sequência de uma muito pouco habitual reacção (por escrito e em tempo recorde) da sociedade civil.
Convém igualmente salientar que esta postura da Bancada Parlamentar do MPLA parece corresponder a uma nova relação de poder no seio do próprio regime, com os deputados do maioritário a assumirem, com um pouco mais de coragem política, as suas responsabilidades, enquanto detentores da maior fatia do poder legislativo que agora repartem com o Presidente da República.
Esta movimentação algo inédita resultou no pronto envio ao parlamento de uma “Reflexão sobre a proposta de Lei das Tic e dos Serviços da Sociedade de Informação” numa iniciativa conjunta subscrita pelo Sindicato dos Jornalistas Angolanos(SJA) e a ong Open Society, que envolveu outras personalidades.
Nesta reflexão, que se concentrou apenas no conteúdo da “Lei de Combate” são apontadas várias inconstitucionalidades/exageros/incongruências penais.
O SJA constatou que “a Internet, tratada no seu articulado como um sistema de informação é considerada um espaço de excepção, pois em nenhum momento o mesmo é visto como sendo uma plataforma a ser utilizada por qualquer projecto editorial (multimédia), devendo por isso, neste âmbito, ser regida pelos mesmos princípios e regras plasmados na Lei de Imprensa”.
“Brada por isso aos céus – pode ainda ler-se no documento - o conteúdo do seu artigo 17, onde é transformado num ilícito penal grave a transmissão de informações sobre terceiros, mesmo quando licitamente produzidas, caso não tenha havido consentimento das pessoas em causa”.
Convém referir que a Lei de Imprensa consagra no seu artigo 23 a existência de empresas jornalísticas electrónicas que são as que têm por objecto principal a recolha, tratamento e difusão de notícias, comentários ou imagens, através da Internet ou outros meios electrónicos.
A bancada parlamentar do MPLA através da 6ª Comissão da Assembleia Nacional resolveu então promover uma segunda consulta pública limitada apenas à um encontro de trabalho entre o MTTI e o SJA, durante o qual o proponente reagiu à “Reflexão” com um extenso “Memorandum” repartido entre uma introdução e nove comentários que preencheram um total de 26 páginas.
A reunião foi inconclusiva pois o SJA não tinha como reagir de imediato aos argumentos de razão com que os juristas do MTTI rebateram as questões de fundo suscitadas pelo documento do Sindicato.
Ficou assente que o SJA faria uma nova reflexão devidamente sustentada, como tem de ser nestes casos, e que a faria chegar no mais curto espaço de tempo possível a quem de direito, o que foi concretizado no âmbito da parceria com a Open Society.
Nesta movimentação e no meio dos desacordos que subsistem particularmente ao nível das inconstitucionalidades detectadas, terá havido já um acordo importante em relação à consagração e utilização da Internet como uma plataforma de média, por isso sujeita aos princípios constitucionais que protegem a liberdade de expressão e de imprensa como direitos fundamentais dos cidadãos.
Nesta conformidade foi com agrado que recebemos a informação do próprio MTTI relacionada com a introdução de mais uma alínea no famoso artigo 17 onde “de facto e de jure” é dada a Internet o tratamento reclamado pelo SJA, resolvendo-se deste modo o imbróglio criado no ante-projecto.
É pois, com alguma expectativa, que aguardamos pelo resultado desta “mini- maratona”, sabendo antecipadamente que muito dificilmente o MTTI aceitará dar a mão à palmatória no capítulo das inconstitucionalidades que o “código penal” das TIC consagra em várias passagens do seu articulado, particularmente no que toca ao excesso de poderes conferidos às autoridades policiais.
É de admitir que a 6ª Comissão venha a produzir um parecer equilibrado que tenha em devida conta os argumentos das duas partes e proceda ela própria às correcções que achar pertinentes em consulta com o MTTI.
Caso as inconstitucionalidades se mantenham haverá ainda a possibilidade de se recorrer aos ofícios do Tribunal Constitucional, pois em última instância será sempre o TC a tomar uma decisão definitiva em relação à este tipo de violação, nomeadamente ao nível da fiscalização abstracta sucessiva.
(Este texto foi publicado na edição deste fim-de-semana do Semanário Angolense)