domingo, 29 de maio de 2011

Tukayana!

Nas últimas semanas conheci em Luanda alguém muito especial que em português bem se poderia chamar “Venceremos”, pois será esta a tradução do seu nome Tukayana, Rui Tukayana, um vernáculo retirado da língua tchokwe, suponho.
Por tudo quanto se passou ao longo da sua curta vida, de facto nome mais acertado não lhe poderia ter sido dado pela sua mãe, a professora e minha amiga Mila, que voltei a vê-la neste regresso à banda, 34 anos após a tragédia que se abateu sobre a sua vida.
O Rui Tukayana começou por vencer a morte ainda não nem sequer tinha nascido, pois esteve prestes a não conhecer a luz do dia, tão graves e terríveis eram as ameaças que na altura pairavam sobre a sua existência que estava quase a acontecer e que bem poderia não ter acontecido se as coisas tivessem conhecido um outro rumo.
Na altura, o quê que não era possível em matéria de maldades, crueldades e violências?
Rui Tukayana, hoje jornalista da TSF em Portugal, regressou a uma cidade que até então nunca tinha conhecido e que tem a particularidade de ser a mesma onde eu também tenho sepultado o meu cordão umbilical, por isso somos “conterras”, bons “conterras” a partir de agora.
Este encontro aconteceu 34 anos depois de eu ter visto e falado pela última vez com seu pai na cela A da cadeia de São Paulo, o Rui Coelho, numa altura em que o Tukayana ainda se encontrava na barriga da Mila, pois só viria a nascer em Agosto de 77, salvo erro.
Nos poucos dias que, há 34 anos, passei com o meu amigo Rui Coelho na cela A, antes de ele ser levado para o suplício, aprendi que o amor, esta palavra sempre difícil de definir na teoria e na filosofia, na prática existe mesmo e não se fala mais disso.
Estou a falar do amor de um homem por uma mulher, do amor de um pai pelo seu filho que ainda nem sequer era gente.

Rui Coelho executado pelo Estado angolano num dia qualquer depois de 27/5/77. Tinha 25 anos. Não teve direito a sepultura
 Se quisesse, pura e simplesmente, o Rui Coelho, na altura com 25 anos de idade, poderia hoje estar vivo, poderia não ter conhecido o caminho sem regresso que, na época, milhares de jovens angolanos foram forçados a percorrer, trucidados sem dó nem piedade pelos seus próprios camaradas, provavelmente, no maior massacre político que a história contemporânea do continente africano já conheceu.
O Rui Coelho não estava em Luanda no 27 de Maio de 1977. Estava em missão de serviço na Argélia, acho, acompanhando um alto responsável governamental com quem trabalhava na época.
Na cela A uma das perguntas que lhe fiz foi exactamente para procurar saber as razões que o levaram a voltar a Luanda, depois de ter sabido dos acontecimentos do 27.
Respondeu-me dizendo que o fez, pois tinha medo que fossem matar a mulher grávida, caso decidisse rumar para um outro destino fora do alcance da tenebrosa DISA.
Como se sabe a secreta angolana foi buscar no estrangeiro muita gente para matar, nomeadamente estudantes, que se encontravam a viver em Cuba e na União Soviética, mas não só.
Em Argel, provavelmente, Rui Coelho não imaginava que o banho de sangue que se seguiu ao dia 27 de Maio de 77 fosse tão implacável, tão sistemático, tão sistémico e tão numericamente expressivo, por isso ainda terá alimentado alguma esperança de vida, após alguns longos anos de prisão, sem julgamento, claro, como já tinha sentenciado o “Guia Imortal”.
Esta esperança o Rui conservou-a até aos últimos dias da sua vida, pelo menos enquanto esteve comigo na cela A, ao lado de outros companheiros, confidenciando-me que tinha sido aconselhado por um dos seus interrogadores da famigerada “Comissão das Lágrimas”, a falar o máximo que soubesse, não soubesse e pudesse, para ver se com tal colaboração ainda era possível salvar-lhe a vida.
Foi o que ele fez no desespero dos seus últimos dias, pensando, obviamente, na Mila e no futuro Tukayana. O “salvador” pelos vistos “desconseguiu de” salvar-lhe a vida.
Na muito recente conversa que tive agora em Luanda com o Rui Tukayana contei-lhe estes derradeiros dias da vida do seu pai biológico que em abono da verdade bem pode ter sido o seu “salvador”, numa estranha relação que só conhece a história deste país poderá tentar perceber.
Disse-me que já lhe tinham contado algumas coisas da vida do seu progenitor, mas que ainda não sabia dos pormenores que lhe havia transmitido.
Com lágrimas quase nos olhos, afirmei que não conhecia uma prova da existência do amor, maior do que aquela que o Rui Coelho tinha demonstrado ao optar por regressar a Luanda nas condições que se viviam no país há 34 anos.
Sublinhei que ele era o filho desse grande amor que o Rui tinha pela Mila e que muito provavelmente ele hoje não existisse e muito menos se chamaria Tukayana, se o seu pai naquele ano de 77 tivesse bazado, como era suposto que qualquer um o fizesse, se estivesse a viver a mesma dura, incerta e angustiante realidade. E logo em África, depois daquilo que foi considerado pelo discurso oficial como sendo “uma tentativa de golpe de estado”.
Poderia até ser que o deixassem nascer, como aconteceu pelo menos com um outro filho do 27 que conheço e que a mãe grávida só foi assassinada depois de parir o rebento que trazia no ventre.
Definitivamente, o Rui era diferente. Era demasiado bom para não assumir as suas responsabilidades.
Não quis arriscar um único fio do cabelo loiríssimo da sua Mila, pois ele, estou convencido, viveria o resto dos seus dias atormentado pela culpa e pelo remorso, caso, na hipótese de ter “fugido”, os seus carrascos transferissem para a sua esposa todo o ódio e rancor que dedicavam à sua pessoa, à sua inteligência, à sua criatividade e à sua capacidade de trabalho.
O Rui dava cartas, o Rui carburava a sério e ainda nem sequer tinha acabado a sua formação universitária (em direito) que interrompeu para regressar ao país e servir uma tal de “revolução” que o viria a engolir.
Com ele aprendi parte do que hoje sei e sou, sobretudo ao nível da simplicidade, da alegria e do humor com que se relacionava com a vida, de preferência, sempre de sandálias e de jeans.
Na passagem de mais este aniversário da data mais tenebrosa da nossa história, nada melhor do que evocar a sua figura luminosa, por ocasião deste reencontro com a parte mais importante da sua herança, que é o Rui Tukayana, o filho que ele não conheceu mas que mesmo assim não permitiu que desaparecesse na noite escura das valas comuns, como aconteceu com ele e tantos e tantos milhares de homens e mulheres por esta Angola fora.
O Tukayana encarna de facto uma vitória que o Rui Coelho alcançou contra todo o mal que foi feito ao país.
Uma vitória da vida sobre a morte, do amor sobre o ódio, da coragem sobre a cobardia.
O Rui Coelho é bem o exemplo da qualidade em matéria de quadros jovens que este país perdeu, definitivamente, na voragem de Maio de 1977 e com os quais hoje estaria, certamente, num outro estágio de desenvolvimento.