segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
HIPERPRESIDENCIALISMO
O constitucionalista português, Vital Moreira, publicou no Público no passado dia 9 de Fevereiro a sua apreciação sobre o novo texto constitucional angolano.
Pelo interesse e actualidade do assunto e também porque nos parece que só agora é que está a ter realmente lugar o prometido debate, que não tem nada a ver com as anteriores e apressadas "sessões de esclarecimento", deixamos aqui à vossa consideração alguns "nacos" da sua prosa, com a devida vénia.
(...)
1-A Constituição concentra tantos poderes nas mãos do Presidente, que o regime nela estabelecido só pode qualificar-se como superpresidencialismo, com os riscos que isso comporta.
2-O que há de original no novo esquema constitucional não é todavia a acumulação
das funções de chefia do Estado e da chefia do governo no Presidente da República nem a ausência de responsabilidade parlamentar deste (que são traços típicos do presidencialismo clássico), mas sim o facto de o Parlamento e o Presidente da República serem escolhidos na mesma eleição, sendo eleito Presidente da República o primeiro nome da lista mais votada no círculo nacional (agora criado) para a Assembleia Nacional.
3-De facto, nos sistemas presidencialistas, trata-se sempre de duas eleições separadas, mesmo quando são parcialmente simultâneas, como sucede nos Estados Unidos, de modo a sublinhar a separação entre o poder legislativo e o poder executivo, que está no cerne do sistema presidencialista.
4-O único problema pode advir da eventualidade de nem o Presidente ter maioria absoluta nem o seu partido ter maioria parlamentar. Nessa situação, o primeiro verá a sua autoridade política diminuída e terá de encontrar compromissos a nível parlamentar para assegurar a maioria necessária para governar (orçamento, leis, etc.).
5-Embora inspirada no exemplo constitucional sul-africano quanto a esse aspecto, a nova Constituição angolana vai muito mais longe na concentração de poderes no Presidente da República. Além das funções de representação interna e externa, inerentes à chefia do Estado, e das funções de chefe do governo – sendo os ministros seus simples colaboradores –, o Presidente angolano vai ter muitos outros poderes importantes, incluindo o poder legislativo (quer em casos de urgência quer mediante delegação parlamentar — o que não é congruente com a lógica do sistema presidencialista), o poder de veto legislativo (só superável por maioria de 2/3), o poder de convocar referendos por sua iniciativa, o poder de declaração do estado de sítio por iniciativa própria (só tendo de consultar o Parlamento), etc. Acresce o poder de livre nomeação de um considerável número de cargos cimeiros da organização do Estado, a começar por vários juízes do Tribunal Constitucional (incluindo o presidente) e membros do Conselho Superior da Magistratura, os presidentes dos demais tribunais superiores, e ainda as chefias militares, o governador do Banco de Angola, entre outros. Trata-se pois de um formidável conjunto de poderes presidenciais, sem paralelo na generalidade das constituições.
6-Mas o novo regime não tem, nem quer ter, nada de “parlamentar”, pois o governo não deriva do Parlamento mas sim da eleição presidencial, não havendo também responsabilidade política do governo perante o Parlamento, requisito essencial do parlamentarismo.
O sistema de governo angolano vai integrar, sim, a família dos regimes “hiperpresidencialistas”, com forte concentração de poderes presidenciais e sem os checks do presidencialismo norte-americano (a começar pela necessidade de confirmação parlamentar dos vastos poderes de nomeação do Presidente).
Acresce que no novo sistema angolano o Presidente, embora não possa propriamente dissolver o
Parlamento, pode afinal obter o mesmo resultado, desde que ele próprio se autodemita, provocando automaticamente novas eleições parlamentares e- presidenciais. Desse modo, o Presidente possui mais um instrumento que os regimes presidencialistas ordinários não proporcionam, que é o de, se as condições políticas se conjugarem, se desfazer de um Parlamento incómodo, ou de reforçar a sua maioria parlamentar. A simples ameaça de exercer esse poder pode ser sufi ciente para vergar uma maioria reticente.
Como é evidente, o superpresidencialismo implica necessariamente uma desvalorização do Parlamento.Resta saber se não se foi longe demais.
Vital Moreira in "Presidencialismo superlativo"- Público (9-02-10)