sábado, 27 de março de 2010

(Flashback-Março 2008) Em memória dos milhares de jovens tombados no Kuito Kwanavale

(...)Gostaríamos de recordar aqui, a propósito da Batalha do Kuito Kuanavale, os milhares de jovens angolanos que durante toda aquela campanha (que demorou cerca de um ano) pereceram, foram trucidados pelos canhões famintos de carne humana, desapareceram de vez dos mapas das suas famílias e dos seus amigos.
Muitos deles, se calhar, ainda nem sequer tinham atingido a maioridade. Sem falar dos mutilados, as contas não oficiais admitem que o número de baixas mortais das FAPLA tenha ultrapassado as quatro mil. De fonte oficial apenas e muito vagamente, se ouviu dizer que a brigada 47 foi completamente destroçada. Na evocação oficial da batalha do Kuito-Kuanavale que dominou os noticiários da semana passada, estes milhares de jovens angolanos foram os grandes esquecidos o que não é aceitável, nem compreensível. Chega a ser revoltante, a trazer-nos de volta um conceito amargo chamado “carne para canhão”. Antes de mais, seria em homenagem da sua memória e da sua morte sem glória que qualquer monumento ao Kuito Kuanavale, ou a outra batalha qualquer travada por estas inóspitas paragens, deveria ser dedicado com a inscrição na lápide fria de todos os seus nomes, à semelhança de outros memoriais que já vimos por este por mundo fora. Para nós o mais expressivo é aquele que está em Washington, onde constam os nomes, por ordem alfabética, dos 50 mil norte-americanos tombados em combate no Vietname no quadro da mais desastrosa aventura internacional patrocinada (promovida) pelos governantes dos EUA. Um novo memorial do género já deverá estar, entretanto, em preparação para “acolher” os quatro mil soldados norte-americanos que tombaram no Iraque e no Afeganistão em cinco anos de invasão que se assinalaram esta semana. Como de facto a guerra ainda não terminou, nem se sabe quando é que “gringos” vão voltar para casa, o memorial em perspectiva vai ter de aguardar mais algum tempo até ser inaugurado. Um tempo certamente dramático para todas as famílias norte-americanas que têm soldados no Iraque e no Afeganistão. Em Angola, contudo, mesmo que a ideia do memorial nominal extensivo fosse aceite, muito dificilmente a mesma poderia ser executada pois ninguém acredita que os registos militares das FAPLA tenham sobrevivido a todas as transformações que o país tem vindo a conhecer. Aliás, o problema dos arquivos neste país é gravíssimo sendo extensivo a todas as instituições oficiais, uma vez que a maior parte delas não tem a sua memória devidamente organizada como deveria ser e muito menos disponível para qualquer tipo de consulta mais pública. Nunca como em Angola a imagem do soldado desconhecido foi tão necessária e adequada para cobrir (resolver) este vazio dos arquivos de guerra. Um vazio preenchido por milhares de jovens esquecidos, que os políticos e os generais não querem recordar como deveria ser, chamando-lhes pelos seus próprios nomes, porque já não sabem exactamente quem e quantos eram e de onde é que vieram. Só sabem que estão definitivamente mortos. E isto será importante para se comemorar o aniversário do 20º aniversário do Kuito Kuanavale? A resposta vai certamente depender do conceito que cada um de nós tem do herói enquanto figura humana e protagonista de algum feito digno de realce. Quem é o verdadeiro herói? Exaltados e ufanos, os nossos políticos a caminho da terceira idade preferem fazer brindes e falar de vitórias e mais vitórias. De alterações profundas na geopolítica, mesmo que depois tenhamos passado mais quatros anos em guerra até a assinatura dos fracassados acordos de Bicesse. Mesmo que depois das eleições de 92 e do Protocolo de Lusaka em 94 o país não tenha parado de se autodestruir até ao dia 4 de Abril de 2002, com todas as terríveis consequências sociais que se conhecem e que se fazem sentir até aos dias de hoje, numa altura em que já se fala de uma nova guerra imposta ao Governo pela pobreza e a miséria. Depois de tudo isto, já se passaram mais seis anos desde que as armas se calaram. O país está em paz, mas não se pode esquecer dos milhares de jovens que tombaram em todos os “kuitoskwanavais” da nossa atormentada trajectória. É efectivamente para eles que o grande monumento deste país, em nome da reconciliação, deveria ser erguido.
Primeiro bem no fundo do coração de todos nós para não voltarmos mais a pensar na guerra como solução, seja para o que for. Depois, bem no centro oficial deste país para comprometer os seus políticos com o futuro de paz de todos nós, porque o passado, por mais que queiramos dourar a pílula ou puxar a brasa para a nossa sardinha, é mesmo para esquecer.
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3 comentários: Anónimo disse... Um abraço para si, sr. Reginaldo.Grande reflexao.Que se faça o enterro digno dos q tombaram nessa batalha. Que se divulguem os nomes dos q morreram nessa batalha para os familiares realizarm o seu komba. Ha muitos militares que morreram nessa batalha, e hoje dizem que estao desaparecidos. 27 de Março de 2010 13:09 Camilo disse... Concordo consigo.Acompanhei o facto de perto.Só "saí" de Luanda em fins de... 1992.Um Abraço. 27 de Março de 2010 23:46 Anónimo disse... Sr. Reginaldo,
Obrigada por ter levantado a questão dos "anónimos" - que para nós esposas, mães, irmãs, não são anónimos...
Quantas de nós não temos uma certidão de óbito, não temos um local aonde levar filhos - que nem o pai conheceram e que hoje são adultos,para falar sobre o pai.Foi Kuito Kuanavale... foi Canjala - e tantos outos locais de combate até ao rio Keve, aquando da invasão Sul Africana.
Do grupo que pereceu na Canjala, os únicos que se importaram com eles, foi o grupo de voluntários reunido e liderado pelo Comandante Kassange - e pagaram com a vida,para os tentar salvar.
Quem foram esses "anónimos"??? Mais uma vez obrigado. É um lenitivo e um bálsamo, saber que os "anónimos" não foram esquecidos. Temos que (re)escrever a história desse período. Eles têm que sair da bruma para nosso convívio. Ainda há pessoas que participaram e sobreviveram, que podem falar, podem citar nomes. A maior parte dessas pessoas vivas nem estão nas listas oficiais, para as pensões dos antigos combatentes...enfimMais uma vez obrigada, não imagina - não faz a minima idéia, da catarse que esta sua reflexão desencadeou no seio da nossa família.